O que ensina ao Brasil o fracasso da Previdência no Chile?

Por Patricia Faermann.

Durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), o Chile tornou-se um experimento de políticas neoliberais na América Latina, entregando grande parte de suas políticas sociais a setores privados. Nessa busca por enxugar as contas públicas e instaurar o Estado mínimo, como hoje se enquadram as propostas do governo Michel Temer no Brasil, os mais de trinta anos que passaram revelam o fracasso das tentativas. Educação, Saúde e Previdência Social são os três pilares do país que comprovam os estragos decorrentes das privatizações.

Ainda em 1981, o Chile decidiu deixar nas mãos do mercado o seu sistema previdenciário. A iniciativa foi comemorada por economistas neoliberais, nos anos 90, sendo o principal deles, o norte-americano Milton Friedman, apadrinhando as reformas como “o milagre do Chile” [vídeo abaixo].

Mas o “milagre” veio abaixo. Após 35 anos, o modelo perverso da aposentadoria mobiliza multidões nas ruas pedindo o seu fim. Um sistema abusivo, sabotador, com cifras impressionantes embolsadas mensalmente pelos fundos de pensões privados, denominados AFP – foram as descrições concedidas ao GGN pelo mestre em Economia pela Universidade do Chile e especialista no tema, Manuel Riesco. E que hoje são indignações homogêneas entre a população.

Em entrevista exclusiva, o pesquisador chileno que foi consultor para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), entre 2002 e 2003, e coordenador externo do Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (UNRISD), entre 2003 e 2007, explicou como funciona o sistema previdenciário no país latino-americano. “É um estelionato piramidal perfeito”, resumiu assim o quadro.

O Chile estabelece um sistema de previdência contributivo, no qual as arrecadações financiam aqueles que já se aposentaram e recebem os benefícios. O problema começa no fato de que quem administra esses recursos são empresas privadas e que esse aporte é obrigatório por lei pelo Estado, sob o discurso de que o imposto contribui não apenas para os pagamentos de pensões, como também para a economia nacional.

“Aqui não é um sistema de pensões, mas de poupança forçada, no qual as aposentadorias se pagam com as contribuições dos trabalhadores, mas os obrigam a arrecadar não só a quantidade necessária para balancear as pensões desse grupo, como também a contribuir, em quase tudo o que se paga, para a chamada ‘poupança nacional’”, explicou Manuel Riesco.

“Assim, a diferença do que se arrecada e o que se gasta é desviada à ‘poupança nacional’, supostamente. E não somente isso, é um imposto que não é arrecadado pelo Tesouro do Chile, mas por empresas privadas. E as empresas administram toda essa gigantesca poupança que se produz pelas contribuições. É uma situação que deixa os chilenos indignados. Porque obrigar aos trabalhadores a destinar uma parte de seu salário à poupança nacional é uma imoralidade gigantesca”, continuou.

Em uma sociedade em que os salários representam 35% do Produto Interno Bruto (PIB) a cada ano, e que os trabalhadores retiram 13% de todos esses recursos ao segundo maior imposto do país a cada mês, o destino final de subsidiar as pensões da população perde-se na ganância das administradoras de fundos privadas.

“O que não está bem é financiar, com parte dessa arrecadação, a economia nacional, ou seja, as pontes, as estradas, construções, e tudo o que um país precisa para se desenvolver”, entende. “O pacto social de todas as sociedades civilizadas é que as elites podem ficar com os excedentes, na medida em que respeitem escrupulosamente a parte dos produtos que correspondem aos trabalhadores. Mas a chamada ‘poupança nacional’ rompe com isso”, disse o especialista.

O que revelam os números da Previdência no Chile

Manifestação contra as AFP do último domingo (26), uma das maiores do ano no país - Foto: Reuters

Os dados disponibilizados pelo sistema previdenciário no Chile comprovam o quanto lucram essas administradoras. Manuel Riesco é fundador e vice-presidente do Centro de Estudos Nacionais do Desenvolvimento Alternativo (CENDA), que emite relatórios com os cálculos da instituição todos os meses.

As últimas cifras publicadas foram de janeiro de 2017. Naquele mês, pouco mais de 5,8 milhões de pessoas contribuíram 13% de seus salários com as AFP, com uma renda média de 700 mil pesos chilenos (equivalente a cerca de 3.500 reais). “Isso significou um aproximado de 580 bilhões de pesos chilenos em um mês, que é mais ou menos 1 bilhão de dólares”, contabilizou.

Esse montante foi arrecadado pelas empresas privadas, que são apenas cinco no país, para financiar as aposentadorias atuais. “Mas quanto elas pagaram? Foram pouco mais de 1 milhão de repasses, e a média da aposentadoria é de 200 mil pesos. Portanto, pagaram somente 240 bilhões de pesos chilenos”.

“E o que sobra?”, questionou o GGN. “Levam-se eles”, respondeu Riesco.

Os dados não param aí. O mestre em Economia explica que o governo repassa às AFP mais um efetivo para que suplementem os pagamentos de pensões. No mês de janeiro, foram entregues 100 bilhões de pesos às administradoras.

“Por serem empresas privadas, o Tesouro ainda subsidia 42% das aposentadorias com dinheiro fiscal. Com isso, dos 240 bilhões de pesos chilenos de pagos em janeiro, a União repassou 100 bilhões, e o que realmente as AFP tiveram de impacto econômico foi 140 bilhões de pesos chilenos. Mas arrecadaram 580 bilhões”, seguiu.

Em proporções

De forma simplificada, de cada 4 pesos chilenos que as AFP arrecadam pelo imposto da Previdência Social, gastam apenas 1 peso. “Isso vem ocorrendo mês a mês a desde 1981, há mais de trinta anos. E como todos os meses ocorre o mesmo, [as administradoras] não irão devolver jamais esse dinheiro. É como um estelionato piramidal, no qual se pagam os benefícios com as novas arrecadações, mas os gastos são menores que o arrecadado e essa diferença fica com eles”, afirmou.

Ainda mais um fator para acrescentar nos cálculos torna o sistema de previdência social no Chile alvo constante de críticas. Nos demais 75% do montante que resta de lucro, a cada mês, às cinco empresas, elas cobram imediatamente um quarto, ou 25%, em comissão e primas de administradoras. Em outras palavras, “na suposta poupança nacional de 5 milhões de trabalhadores, 1/4 se embolsa no mesmo mês as empresas”.

Em moeda local, isso significou para o mês de janeiro de 2017 um total de 60 bilhões de pesos chilenos diretamente para as AFP, sem serem questionados.

No sistema herdado da ditadura de Pinochet, também atuam as companhias de seguros. No país latinoamericano, elas são propriedades dos mesmos controladores das administradoras de fundos privados. Nessa rede de mercado, Manuel Riesco compara o quadro como “a operação em sistema piramidal ou Ponzi dentro do esquema Ponzi geral”.

Isso porque se uma pessoa adere a um plano de seguro vitalício, ela autoriza o repasse de todo o seu fundo de pensão em nome da companhia, que “em troca” lhe devolve pouco a pouco.

“Mas resulta que quando recebem mês a mês dos novos aposentados, pagam todas as pensões e ainda sobra 100 bilhões de pesos chilenos a mais. Faça as contas: 100 bilhões pelas companhias de seguros e 60 bilhões pela vida das administradoras, as AFP, que são ambas dos mesmos donos. É algo muito escandaloso, grotescamente”, exclamou.

“Poupança nacional”

Manifestação contra as AFP do último domingo (26), uma das maiores do ano no país - Foto: Reuters

A contrapartida para as administradoras de fundo, com todo o montante que arrecadam todos os meses dos futuros aposentados chilenos, é investir metade desses recursos em estruturas no país. A outra metade, conta Riesco, apostam em ações nos mercados financeiros internacionais.

O sistema de “riqueza para poucos” é um dos principais motivos de constrangimento pela outra ponta, os que estão excluídos do setor. Isso porque o país é controlado, basicamente, por doze grandes grupos econômicos, nas mais diversas áreas da economia e mercado.

Neste cenário, o especialista em políticas públicas e sociais ressalta que os investimentos daquilo que resulta de lucro das aposentadorias retornam a este segmento, seja na forma de compra e venda de ativos, seja nas construções e obras do país. “É um jato de dinheiro que se retira dos salários e se entrega ao mercado financeiro e também às grandes empresas”, disse.

Por outro lado, a proporção entre o valor de aposentadoria hoje no país em comparação à renda média mostra que a margem de lucro apenas aumentou aos controladores dos fundos. Enquanto atualmente a pensão é de 200 mil pesos chilenos sobre 700 mil de média salarial, representando menos de um terço, há cerca de vinte anos representava aproximadamente 40% dos salários tributáveis.

Se o sistema piramidal oferece riscos e falhas, o pesquisador Manuel Riesco destaca que a Previdência Privada no Chile não, porque obriga por lei o cidadão a pagar todos os meses, sem poder retirar. “É um sistema de poupança forçada, que está desenhado para que uma parte dos salários seja destinada, constantemente, todos os anos não a pagar pensões, mas à ‘economia nacional’. O dinheiro que as pessoas emprestaram, elas não podem retirar e tampouco decidem se é para investir aqui ou ali”, manifestou.

Para ele, a única solução é o que grande parte da população chilena já vem pressionando a cada dia, revelada nas últimas manifestações populares: o fim das AFP. A reforma de um sistema que recupere o caráter contributivo, mas longe dos poderes do mercado, no qual o Estado seja o responsável por arrecadar os 500 bilhões de pesos mensalmente, e “no lugar de entregar aos banqueiros, pagar melhores pensões e economizar em todos os subsídios”, concluiu o economista.

Fonte: Jornal GGN

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