O que é e como funciona esse poderoso dispositivo social de controle chamado gênero

escarpinesPor Letícia Lanz.

Gênero é apenas um conjunto de conceitos e normas de conduta criadas pela sociedade – uma mera regulamentação – para o exercício do sexo recebido pelo indivíduo ao nascer. Entretanto, a força da cultura é tamanha que, na prática, essa regulamentação social passa a ter mais peso, mais valor e mais alcance na definição final do perfil a ser seguido pelos diferentes sexos do que a própria herança genética recebida pelos indivíduos.
Gênero é a maneira como uma sociedade, numa determinada época e lugar, atribui papéis, funções, responsabilidades, tarefas, modos de ser e estilos de vida a cada um dos dois sexos biológicos existentes na natureza.
Embora a maioria dos aspectos relacionados ao que é chamado sociopolítica e culturalmente de “feminino” ou de “masculino” não esteja nem no macho nem na fêmea enquanto sexos biológicos distintos, criados pela natureza, é esse sexo que continua determinando o gênero em que a pessoa deve ser enquadrada ao nascer. A herança genética determina tão somente as óbvias diferenças anatômicas e fisiológicas existentes entre um homem e uma mulher. São os valores, crenças, costumes e tradições vigentes numa sociedade que se encarregam de criar os diferentes aparatos de expectativas de comportamento social para cada um dos sexos, comumente conhecidos como “gênero feminino” e “gênero masculino”.
Podemos imaginar o gênero como uma espécie de “território nacional” onde as pessoas só têm cidadania plena se tiverem nascido lá. Só porque alguém “se sente” membro do território de gênero não significa que será automaticamente reconhecido como cidadão do lugar. Pelo contrário, o mais provável é a pessoa que “se sente cidadã”, sem ser cidadã, ser ostensivamente rechaçada pelos que efetivamente são cidadãos do lugar.
Da mesma forma que só porque alguém “se sente” mulher ou homem não significa que a sociedade irá reconhecer a pessoa como mulher ou homem. Não é assim que a coisa funciona: esse é justamente o direito que é ostensivamente negado às pessoas transgêneras ou gênero-desviantes. Esse é justamente o direito a ser conquistado, pois é um direito que hoje não existe. Por mais que uma pessoa se comporte e “pareça” ser uma cidadã americana jamais será automaticamente considerada cidadã americana. Tudo bem que a pessoa, num delírio pessoal, não só se reconheça mas também queira todas as demais pessoas a reconheçam como mulher. Para as normas de gênero que aí estão, a pessoa JAMAIS SERÁ MULHER.
A menos que se mudem inteiramente essas normas, tarefa que depende de engajamento político e luta intensa contra a ordem vigente, coisa que alguém que “se sente” mulher nem pensa em fazer. Pelo menos até ser duramente despertada por uma realidade que ela insiste em negar.

Ter um gênero é essencialmente desempenhar papeis. E, como todas sabemos, viver é uma coisa; desempenhar um papel é outra. Por trás do personagem há sempre o ator, que é uma pessoa, um indivíduo, um ser humano.
Sexo, gênero, orientação sexual não são “dados” inexoráveis da natureza, mas “discursos normatizadores de condutas”, grandes dispositivos de controle que a sociedade desenvolve e obriga as pessoas a seguirem compulsoriamente.
Ser mulher ou ser homem não é um dado estrutural da natureza, mas uma mera construção social, criada e mantida por “discursos normatizadores”. As pessoas aprendem a ser mulher ou a ser homem e desempenham esses papeis de mulher ou de homem como qualquer ator desempenha um papel no palco. E essa performance está tão naturalizada, que a gente passa a acreditar que se trata de algo absolutamente natural.
Mas a verdade é que qualquer pessoa pode ser mulher ou ser homem o quanto quiser, quando quiser, como quiser. Para ser mulher, não é preciso ter uma vagina, como também não é preciso ter um pênis para ser homem.
Bem, se um indivíduo nascido macho quiser ter uma vagina ou um indivíduo nascido mulher quiser ter um pênis, se achar realmente importante mexer no corpo para ter uma vagina no lugar do pênis e vice-versa, a medicina plástica está superavançada e hoje é capaz de criar uma vagina perfeitamente funcional; a criação do pênis também se aperfeiçoa a cada dia. Da mesma forma, “ser mulher” não implica em gostar de homem para se apaixonar e/ou fazer sexo. Orientação sexual é também um discurso social, um discurso normatizador: um dispositivo de controle social.
Quando eu digo para as pessoas não permitirem que os rótulos de identidade grudem em suas testas é para que elas não se convençam definitivamente de que realmente são o personagem que representam, até acabar se transformando nesse próprio personagem.
Você pode ser mulher, ser homem, ser lésbica, ser gay, ser hétero o quanto quiser, variar essas combinações o quanto quiser. Só não pode deixar de ser você mesma: – gente. E o que os rótulos fazem é eliminar inteiramente essa possibilidade de ser gente, matando sem piedade a pessoa única que existe em você, tornando-a “dócil”, domada e “perfeitamente administrável” pelas estruturas sociais.

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