O que acontece quando os “games” em 1ª pessoa envolvem crimes de guerra

Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters
Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Por João Paulo Charleaux.

A revista estadunidense “The Atlantic” traz na edição de agosto um artigo a respeito de um game em primeira pessoa (no qual o jogador participa das situações por meio de uma lente subjetiva) que está sendo desenvolvido por um grupo de estudantes de Pittsburgh, nos EUA. Nele, o jogador é um agente que tortura prisioneiros iraquianos para obter informações de interesse militar.

O jogo é uma ficção, mas os métodos são baseados em situações reais. Choques elétricos, afogamentos, privação de sono e outras técnicas semelhantes foram de fato aplicadas por estadunidenses em locais de detenção secretos espalhados pelo mundo e especificamente no Camp Bucca, no sudeste do Iraque, local no qual a partida se desenrola, e onde os EUA mantiveram centenas de prisioneiros acusados de terrorismo entre 2003 e 2009.

O iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi foi um desses presos. Ele viria a fundar o Estado Islâmico, em associação com outros ex-detentos mantidos em Bucca. A partir do Iraque, o grupo se expandiu em seguida para a Síria, de onde tem coordenado ataques terroristas em diversas partes do mundo, incluindo cidades europeias, como Paris, Nice,Bruxelas e Berlim.

No jogo de videogame, é possível remanejar os prisioneiros de celas e de alas, assim como é possível escolher a quem interrogar. Se, por um lado, o jogador é premiado por cada informação obtida – mesmo usando tortura -, por outro, ele ajuda a criar algumas das condições que tornaram possível o surgimento do Estado Islâmico.

O jogo ainda não foi lançado. As informações foram apresentadas pelo repórter Kaveh Waddell, da “The Atlantic”, a partir de entrevistas com os desenvolvedores do game. Aparentemente, a partida não tem fim. E não há, portanto, um vencedor.

Tortura de prisioneiros é crime de guerra

Prisioneiros caminham no interior da prisão de Camp Bucca, no Iraque. Foto: Atef Hassan/Reuters  16/9/2009

Os métodos de tortura explorados pelo jogo violam os direitos humanos e o direito internacional humanitário – conjunto de normas que começou a ser estabelecido em 1864 e que, desde então, e a partir de diversas novas incorporações ao longo do tempo, regula os métodos usados em conflitos armados internos e internacionais.

As violações extensivas, graves e persistentes a essas normas são chamadas “crimes de guerra”.

A discussão, tradicionalmente restrita ao campo da cinematografia – sobre expôr o espectador à violência -, fica mais intensa com os jogos em primeira pessoa, pois, neles, o jogador não é um espectador, ele toma decisões e é recompensado por elas. Isso ocorre tanto com adultos quanto com jovens e crianças, público tradicional desse tipo de entretenimento.

O interesse das agências humanitárias

Jogos como esse – ainda sem nome e sem previsão de lançamento no mercado – despertam há tempos a atenção de especialistas e de organizações que se dedicam a defender a aplicação das normas da guerra. Elas consideram que estes “brinquedos” possam difundir o que é certo, do ponto de vista legal. E coibir o que é errado e ilegal.

Uma das principais delas é o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), cujo fundador, Henry Dunant, foi o homem que levou o Estado suíço a sediar a reunião de países que adotaram, no século 19, a primeira Convenção de Genebra, que tratava dos direitos dos combatentes feridos e enfermos nos campos de batalha.

Hoje, a organização possui um núcleo dedicado a estabelecer contato e diálogo com os desenvolvedores de jogos de guerra. O tema foi tratado num extenso artigo chamado “Além do Call of Duty [nome de um dos jogos de simulação de guerra maior sucesso no mundo]: por que jogadores de videogame não devem enfrentar os mesmos dilemas que os soldados da vida real?”, escrito por três especialistas em direito internacional: Ben Clarke, Christian Rouffaer e François Sénéchaud.

Como os jogos ensinam

Militares jogam videogame durante folga na base de Kaohsiung, Taiwan. Foto SK/ Tan/Reuters 26/8/1999

No artigo, os autores afirmam que o jogador aprende com as suas próprias atitudes, não há uma espécie de legislação a ser respeitada em princípio. Se algo “funciona”, ele é recompensado (passa de nível, ganha medalhas, sobe de patente, acumula pontos, tem acesso a melhores armas e munições). Se “não funciona”, ele é penalizado, ou simplesmente não avança. Assim, os métodos empregados são apenas formas de se chegar a um fim. A recompensa é “vencer”, não importa a que custo.

A única forma de estimular o conhecimento e o respeito às leis da guerra nos jogos de simulação seria, então, associar violações a punições e respeito a recompensas, de maneira que o jogador incorpore esse conhecimento por experiência própria, até que o processo se torne autômato.

O contrário também é verdadeiro: o jogador pode “se tornar” um violador autômato – na representação simbólica do jogo – se é recompensado mesmo quando viola as normas humanitárias.

Como isso passa para a ‘vida real’

Donald Trump discursa em evento de veteranos de guerra estadunidenses. Foto: Chirs Keane/Reuters 27/6/2016

Jogar um game não faz alguém reproduzir o comportamento virtual em sua vida real – mesmo que muitos jovens militares no mundo todo joguem esses jogos com frequência. Mas, certamente, seus juízos a respeito de como governantes e legisladores devem agir na hora de regular esses assuntos pode ser afetado, assim como seu parâmetro de julgamento em relação às notícias a esse respeito, ponderam os autores do artigo.

O candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump, por exemplo, se refere às simulações de afogamento como “mínima, mínima, mínima tortura”, e diz que faria ainda pior. Se vencer a eleição de 8 de novembro, caberá a ele autorizar métodos de interrogatório usados pelas forças estadunidenses em guerra. Trump é apoiado por metade dos eleitores estadunidenses, dependendo da pesquisa.

A diferença entre a guerra e a violência cotidiana

Há jogos nos quais as situações de violência ocorrem em representações de um cotidiano familiar para a maioria dos jogadores. No GTA, por exemplo, o jogador pode roubar um carro e atropelar pessoas na calçada, ou disparar uma arma contra alguém na rua. Mesmo o jogador mais mal informado sabe de alguma maneira que aquela situação envolve a violação de uma série de leis mais ou menos conhecidas. O ato é, sem dúvida, um crime.

Já nos jogos de guerra, o desconhecimento sobre as leis aplicáveis é quase total. Poucos saberiam, por exemplo, qual o tratamento permitido em relação a prisioneiros de guerra, ou sobre o que diferencia uma morte legítima em campo de batalha de um assassinato de civis, ou o que é um uso proporcional da força, um alvo legítimo, um dano colateral – ou, o que é difícil até mesmo para especialistas da área, o que é tortura e o que são “métodos rigorosos de interrogatório”, como no caso das simulações de afogamento.

“Esses jogos frequentemente retratam conflitos armados sem lei nos quais as ações não têm qualquer consequência. Isso manda uma mensagem negativa para os jogadores sobre a existência de normas humanitárias durante os conflitos armados (…). Por que os jogadores não podem ser premiados pelo respeito às normas que regem o uso da força e o tratamento das pessoas que se encontrem nas mãos de um inimigo, e sancionados quando violarem essas mesmas normas?”, questionam Clarke, Rouffaer e Sénéchaud.

Fonte: Nexo.

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