“O presidente da Funai nos entregou a morte”

Enterro de Virgínio Tupa Rero Jevy Benites Avá-Guarani, de 24 anos, do Tekoha itamarã, Diamante do Oeste, PR, assassinado no dia 8 de março (Foto: Povo Avá-Guarani)

Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.

No dia 17 de março o presidente da Funai declarou nulidade no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Tekoha Guasu Guavirá, localizada nos municípios Guaíra e Terra Roxa, no oeste do Paraná, que reconhecia os direitos dos povos Avá Guarani. 

O processo foi instaurado pelas portarias 136 de fevereiro de 2009 e 139 de fevereiro de 2014 e aprovado por meio do despacho nº 2 de setembro de 2018. Em 15 de outubro de 2018 foi concluído, ou seja, foram 9 anos de espera para mais de 3 mil pessoas que vivem naquele espaço.

A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas lançou uma nota de repúdio à Funai e à portaria 418, publicada no dia 26, a qual declarou a nulidade do processo. A Frente identifica a portaria como inconstitucional, baseada em uma sentença judicial sujeita à modificação pelo Poder Judiciário. A nota afirma que a medida submete a comunidade à violência em um momento de maior vulnerabilidade devido à pandemia do Covid-19.

O Observatório da Temática Indígena na América Latina, Obial, órgão da UNILA, Universidade Federal da Integração Latino-Americana, também manifestou sua contrariedade à decisão afirmando que a medida do presidente da Funai visa atender a interesses particulares. 

Para o Obial “não é plausível a alegação de que a anulação da RCID se deve à sentença da Ação nº 5001048-25 2018 4 04 7017, movida pela Prefeitura Municipal de Guaíra, PR, que questionou a identificação da TI por ela não ter participado do processo de identificação” por ser uma decisão de primeira instância, ainda cabendo recursos, inclusive da própria Funai. O presidente da Funai fez o contrário do que é sua função de recorrer à decisão do magistrado para defender os direitos dos povos indígenas, acatando a decisão sem questionar. 

O Observatório da Temática Indígena na América Latina, Obial, órgão da UNILA, manifesta contrariedade à portaria (Foto: Reprodução)

A nota ainda cita dados de matéria publicada pelo Cimi de que “nos últimos seis meses foi registrado um atropelamento, uma tentativa de atropelamento de dois Guarani, duas tentativas de assassinatos, o assassinato do Demilson Ovelar Mendes, duas invasões à Terra Indígena, além de ameaças de morte e omissão do Poder Público para garantir a construção de escolas indígenas dentro dos tekoha”.

Manifestação pela demarcação das terras Avá-Guarani, em Guaíra (Foto: Diego Pellizari/Cimi)

A Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai, também se manifestou contra a portaria. Leia a nota completa.

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados enviou um ofício ao Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, Álvaro Osório do Valle Simeão, questionando a Funai por contrariar sua função institucional, “não recorreu da decisão e anulou o processo administrativo demarcatório antes mesmo do trânsito em julgado da sentença”. 

O Ofício também destaca que “uma terra indígena é propriedade da União por disposição constitucional expressa (art. 20, inciso IX). Agir negligentemente na conservação de patrimônio público é ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário (Lei 8.429/1992, art. 10, caput e inciso X)” solicitando informações e providências a respeito da situação. Em resposta a Funai alega que não vai recorrer da decisão do juiz. 

 

A Comissão também enviou ofício ao Coordenador da 6ª Câmara – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, Antônio Carlos Bigonha, apontando sobre o contexto da comunidade “de agressão física, ameaças e ataques a tiros contra indígenas, atos estes descritos no Ofício nº 534/2019, de 22/11/2019, enviado ao Secretário de Segurança Pública do Paraná”. O Ofício questiona: “Não se tem notícia de qualquer providência por parte da União, após a publicação da Portaria n° 418, para garantir que os prejuízos à comunidade não se agravem”.

Mendônio Avá-Guarani foi agredido na cidade de Guaíra. Antes havia levado remédios para não indígenas (Foto: povo Avá-Guarani)

O documento solicita ao MPF “esforços no sentido de adotar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, com a urgência que o caso requer, para reverter a sentença proferida”. O MPF ainda não respondeu ao Ofício. 

O cacique Ilson Soares, do Tekoha Yhovy, TI Guasu Guavira, declara com tristeza que os povos indígenas se encontram, neste momento, ainda mais vulneráveis devido à pandemia e que estão indignados com a ação covarde da presidência da Funai. “O presidente da Funai nos entregou a morte pois acatou uma decisão de primeira instância do juiz federal de Guaíra sem consultar os povos indígenas, a Funai não recorreu, estamos correndo risco de pegar doença, de sermos atacados dentro de nossas aldeias”, comenta Leocínio. Ele destaca que pessoas armaram emboscadas e mataram dois indígenas em Diamante do Oeste, além de entrarem na comunidade ameaçando as famílias: “Como ficaremos depois da pandemia? Para onde vamos”?

Ilson Soares, cacique do Tekoha Yhovy, TI Guasu Guavira (Foto: Reprodução)

O cacique Leocínio Gonçalves, do Tekoha Tajy Poty, uma das 14 aldeias da TI Guasu Guavirá, também ressalta que o povo Avá Guarani não aceita a anulação do processo. “Somos nativos das terras, somos raízes das florestas. Você não pode fazer isso com os indígenas, você tem que pensar nas famílias, isso é uma vergonha Funai”, comenta Leocínio. 

Leocínio Gonçalves, cacique do Tekoha Tajy Poty, TI Guasu Guavira (Foto: Reprodução)

Um nota lançada pelo Cimi que atua no oeste do Paraná relata que as 14 comunidades ou Tekoha Guarani afetadas pela medida, lutam há décadas para ser reconhecidas. “A região faz parte do Oeste do estado do Paraná, fronteira com Mato Grosso do Sul e Paraguai, lugar em que a arqueologia identificou os vestígios mais antigos dessa população, podendo afirmar que a região é o berço do povo Guarani”. A nota também destaca que o RCID ainda não significava a demarcação e homologação, mas “um passo importante de reconhecimento histórico e contemporâneo”, o que possibilitaria a criação de infraestrutura básica como posto de saúde e escolas.

Assista às entrevistas no JTT Indigenista.

Confira abaixo nota completa elaborada pelo Cimi do oeste do Paraná.

“Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena”

Presidente da Funai executa a bravata de Bolsonaro e anula demarcação de terra Guarani no oeste do Paraná

O presidente da Funai, Sr. Marcelo Augusto Xavier da Silva, anulou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terra Indígena (RCID) Ava-Guarani Guasu Guavirá, nos município de Guaíra e Terra Roxa (PR), que demorou 09 anos para ser concluído, a fim de fazer valer a política do atual governo de nenhum centímetro de terra a mais para os indígenas, conforme discurso proferido em dezembro de 2018 pelo atual presidente.

O presidente da Funai ignorou por completo todas as decisões judiciais que obrigaram a Funai a concluir os estudos de identificação e delimitação, que foram concluídos e publicados em 15 de outubro 2018. Deu as costas para a dura e violenta realidade que vivem as 14 comunidades Guarani, com mais de 3 mil pessoas, afetadas por essa decisão.

O presidente da Funai argumentou, em sua decisão, que estaria cumprindo exigências de decisão proferida, em 17 de fevereiro de 2020, em primeira instância, pelo Juiz Federal de Guaíra que anulou o RCID (Ação de nº. 5001048-25 2018 4 04 7017), movida pela Prefeitura Municipal que questionou a identificação da TI por ela não ter participado do processo de identificação. O correto seria a Funai ingressar nas instâncias superiores da justiça com agravo na decisão do Juiz, porque é dever constitucional do órgão defender os bens da União e a terra indígena é um bem da união, mesmo sendo de usufruto exclusivo dos indígenas. Porém, percebe-se claramente que a Funai abdicou da defesa do bem público em favor de particulares, porque o processo movido pela prefeitura, tinha como propósito defender o interesse de particulares.

Casos semelhantes, julgados no estado do Mato Grosso do Sul, o Tribunal Federal da 1ª Região (TRF1), de São Paulo, anulou a decisão dos juízes locais, justamente porque não pode um ente público ingressar com ações para defender os interesses privados. A Funai, no entanto, preferiu acatar sem questionar. Fica a nítida impressão que para a Funai, acima da defesa da Constituição, estão os interesses privados. É importante informar que a Prefeitura foi convidada para participar do Grupo Técnico o que o fez de diferentes maneiras.

Para os Guarani da região essa foi uma atitude covarde do presidente da Funai que deveria ser cuidadosa com a legislação e proteger a população Guarani que está vulnerável, ainda mais nesse momento de quarentena por conta da pandemia do Corona vírus. O Cimi e outras entidades se manifestaram tecendo duras críticas a decisão, agravada por se dar justamente num momento que as comunidades estão mais fragilizadas.

O Processo de demarcação da TI Guasu Guairá

As 14 comunidades ou Tekoha Guarani afetadas pela medida, lutaram há décadas para ser reconhecidas. A região, faz parte do Oeste do estado do Paraná, fronteira com Mato Grosso do Sul e Paraguai, lugar em que a arqueologia identificou os vestígios mais antigos dessa população, podendo afirmar que a região é o berço do povo Guarani. Na região também se deu início as reduções dos padres Jesuítas da Província do Paraguai, em 1610, que resultou em mais de 30 cidades, transladadas mais ao sul por conta dos ataques dos sanguinários bandeirantes paulistas.

Uma parcela significativa da população Guarani ficou vivendo livremente na região até que voltam a serem importunados no início do século XX com a exploração de erva-mate, novos mercenários chegam à região e exploram a mão de obra e as terras Guarani. Mas a perda da terra vai ocorrer definitivamente a partir dos anos 1940 quando o governo do estado do Paraná entregou todas as terras da região a empresas privadas. Inclusive o povo indígena Xetá, que vivia um pouco mais ao norte, contatado nesse período, foi logo extinto e suas crianças entregues a famílias de brancos para ser adotadas.

A ação do SPI (até 1967) e da Funai foi de transferir as comunidades Guarani da região para terras Kaingang no Paraná, ou mesmo para reservas Guarani no MS. Como a construção da Hidrelétrica Itaipu Binacional (1983), várias comunidades são afetadas. Números indicam que na margem direita do rio Paraná (Paraguai) formam 36 comunidades e na margem esquerda outras 19. Não foram indenizados ou mitigados. Em tempos da Ditadura Militar ocorreram genocídios com essa população.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, e o fim da tutela, ganha corpo a reivindicação dos Guarani pela demarcação das terras. Porém, depois de muitas disputas administrativas e judicias, a Funai é obrigada a constituir um grupo técnico, em 2009 (Portaria Funai 136/2009 e 139/2014 e 402/2014). Novas disputas administrativas e judicias ocorreram ao longo ao processo. E finalmente em setembro de 2018 o Relatório é publicado, identificando e delimitando uma área de 24.028 hectares, ocorre que cerca de 19 mil hectares incidem em terras registradas em nome de particulares, a sua grande maioria griladas e vendidas aos atuais proprietários.

Nesses últimos 20 anos as violências só aumentaram, primeiro pela desassistência e exploração da mão de obra depois pelas agressões físicas quando teve início o processo. A elite local fez campanhas públicas com outdoor na cidade contra a demarcação das terras. A ação desses setores tinha como propósito insuflar a população local contra os Guarani. Denúncias de discriminação já são rotineiras, porém elas se transformam em agressões físicas, como vem demonstrando os Relatórios de Violência contra os Povos Indígenas editado anualmente pelo Cimi.  De acordo com o Cimi no último semestre aumento os casos de violência, sendo “registrado um atropelamento, uma tentativa de atropelamento de dois Guarani, duas tentativas de assassinatos, um assassinato, duas invasões da TI e ameaças de morte”, além das omissões no atendimento a educação escolar e saúde.

Essas mais de 3 mil pessoas estão vivendo em barracos, amontoados nos pequenos espaços de terra nos últimos fragmentos de mata na região em meio a soja e o gado. Ao menos duas comunidades foram cercadas pelas cidades e hoje tornaram-se bairro periférico de Guaíra. A sobrevivência é uma luta diária.

O RCID, que ainda não era a demarcação e homologação, mas significava um passo importante de reconhecimento histórico e contemporâneo, possibilitava a criação de infraestrutura básica como posto de saúde e escolas, mas agora está anulado.

Pelo contexto histórico, é muito provável que aumente a violência pela expulsão das comunidades tanto com ações de particulares, como com medidas de reintegração de posse.

Em tempos em que a violência contra os povos indígenas é incentivada pelo governo federal, conforme se manifestou a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB), a decisão do presidente da Funai é um salvo conduto para aqueles que querem praticar os crimes. É deixar as comunidades mais vulneráveis ainda às ações genocidas que remontam o período colonial.

Foz do Iguaçu, 27 de março de 2020.

Prof. Dr. Clovis Antonio Brighenti – Professor de História Indígena na UNILA

Mestranda Osmarina de Oliveira, Geografa e mestranda no IELA/UNILA e membra do Cimi

 

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