O perigoso narcisismo de João Dória?

Por Fran Alavina.

Tudo é simulacro nas postagens obsessivas do suposto “trabalhador”. Mas desvincular imagem de realidade pode ser eficaz, em tempos de política do espetáculo.

Os leitores de OutrasPalavras lembram-se de que acompanhamos criticamente o “fenômeno” Doria desde a campanha para o último pleito municipal. Em sua primeira fase, nosso ovacionado prefeito notabilizou-se por unir na publicidade eleitoral duas figuras distintas: ele dizia ser tanto trabalhador, quanto gestor. Nestas duas figuras, preparadas para o consumo eleitoral mais imediato, não havia mais que a construção de simulacros: superficiais e de fraca densidade, porém de potência considerável, pois quanto mais baixa a densidade, mais fácil manipulá-los.

Neste caso, o dos simulacros políticos, forja-se uma imagem plana e maleável, possível de se adequar às mais diversas necessidades. Por isso, tal imagem mesmo quando submetida a transformações parece não haver sofrido mudança. Pode-se dizer que a relação entre a coisa e a sua imagem é desfeita, não há um fundo real ao qual a imagem se relaciona, do qual receba sentido. A imagem já não é mais imagem de algo, mas apenas imagem de si mesma, tem vida própria e toma o lugar do real. O palpável e o tangível saem de cena, dá-se então uma imagem da imagem, fantasmagorias do real para as quais não se pode mais aplicar pares categoriais opostos como: verdade x falsidadereal x imaginadoartificial x natural. Recorde-se que somos regidos cada vez mais pelo império das imagens e nossa sensibilidade – enquanto âmbito histórico-social compartilhado – parece ter sucumbido à relação invertida: o real é reduzido cada vez mais a sua imagem manipulada na forma da ficção.

Já não reclamamos mais se nos oferecem uma manipulação como se fosse algo espontâneo; parece que gostamos cada vez mais da espontaneidade fingida, porque também fingimos espontaneidade. Ora, tudo isto tem ocorrido ante nossos olhos nas atuações do prefeito de São Paulo. Ele não é senão uma imagem sem fundo de realidade e índice de verdade, imagem de imagem na qual a encenação se passa por espontaneidade e o artificial por natural.

Isto não é segredo. Quem não sabe que o prefeito é um grande ator da cena política e que não há praticamente nenhuma naturalidade em sua figura prosaica? A questão não é tanto a sua existência enquanto forma política própria de uma democracia degenerada e do momento de assunção da sensibilidade virtual – a grande questão a ser respondida é: como se explica que a farsa possa se arrogar verdadeira sem maiores complicações? Por que não basta mais simplesmente dizer que a farsa é uma farsa? Seria por que já não há mais nada de positivo e de real com o qual pudéssemos nos opor ao farsesco?

Trabalhador? Sabemos que o prefeito passa bem longe de ser um. Ser trabalhador não se refere a ter uma agenda diária ocupadíssima, mas ao pertencimento a classe social – da qual o prefeito não faz parte por ser um plutocrata. Justamente por não ser trabalhador, o slogan do “João Trabalhador” é mantido a todo custo pelo nosso alinhado administrador municipal. Ele nunca se cansa de repetir as “horas e mais horas” da sua vida que seriam destinadas ao seu cargo institucional.

Agindo assim, Doria mostra que nunca deixou de estar em campanha eleitoral, mesmo após assumir a prefeitura. Sua tática é aquela de uma disputa interminável, típica de uma subjetividade moldada no capitalismo mais selvagem, onde a concorrência, não podendo mais ser exercida entre adversários, é exercida contra si mesmo. Cada um é tanto adversário dos outros, quanto de si mesmo na busca de uma rentabilidade infinita. Como em um call center, o prefeito não trabalha tendo como parâmetro a qualidade das ações, mais por metas, uma vez que importa a quantidade. No mundo insano das metas, não há limites – hoje sempre se pode fazer mais do que ontem, mesmo que não haja sentido algum para essa corrida de ultrapassagem de resultados, que por isso torna-se patológica. Daí, talvez, o slogan assumido seja o: “Acelera São Paulo!”. Só não se sabe para onde…

Ademias, por se tratar de uma concorrência contra si mesmo, há uma exacerbação do narcisismo. O mundo torna-se a plateia e o palco do show do eu: quem não é meu espectador e não bate palmas para minhas ações, é meu inimigo. Talvez o exemplo histórico mais expressivo deste tipo político tenha sido Nero: tanto mais narcísico, quanto degenerado. Dessa maneira, o espelho já não sendo mais suficiente, nosso gestor municipal decidiu unir seu perfil nas redes sociais e sua atuação na prefeitura. Gestou algo novo na política brasileira: o reality show político. Como em um Show de Truman invertido, aparece como no enredo de uma história panóptica — porém não é manipulado, e sim o diretor e protagonista da manipulação.

O prefeito só não fez ainda vídeo de si mesmo dormindo – ele inunda seu perfil nas redes sociais com horas e mais horas de apresentações onde é sempre o protagonista. São vídeos curtos, já que feitos para o consumo imediato; bem editados, pois objetivam “criar” um falso cotidiano do prefeito. Só vemos o que ele mostra, aquilo que lhe interessa ostentar. Não vemos seu cotidiano real, mas o modo como ele manipula em imagens suas ações diárias. Ele é de fato um bom gestor, mas de sua própria imagem.

Nos vídeos, que se querem passar por espontâneos, é possível detectar a destreza com a qual o prefeito atua na frente das câmeras: ele tem sempre o time certo; deixa-se focar no melhor ângulo; seu rosto enche quase que completamente o enquadramento visual fazendo do seu entorno uma paisagem acessória; o gesto que se deixa enquadrar quase à perfeição; o tom de voz modulado de acordo com cada momento; o sorriso que nunca apresenta variações de tom. Embora se deixe capturar “fazendo trabalhos braçais”, nunca vemos o prefeito esboçar uma mísera gota de suor no rosto, como vemos nos calejados rostos dos verdadeiros trabalhadores. Seu cabelo nunca está desalinhado.

O prefeito não é Doria propriamente dito, mas a imagem que ele manipula como tal. Há mais de sete meses somos governados mais por uma imagem do que por algo real. Nesta gestão municipal, a única realidade tangível é a da farsa.

Agora, nesses tempos em que o prefeito acelera fora de São Paulo, viajando incessantemente, não se pode pedir que fique na cidade, que permaneça na prefeitura, pois nunca esteve nela. A São Paulo de Doria não existe além da ficção de imagens que ele manipula. A cidade é uma distopia e seu prefeito uma atopia!

Fonte: Controvérsia. 

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