O óbvio: discutir aborto interessa à sociedade

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Enquanto no Congresso Nacional tramita a proposta de legalização do aborto até a 12a semana de gestação, feita pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ), nas Câmaras Municipais país afora começam a pipocar projetos que vão na mão contrária desse. Em Curitiba (PR) e em Salvador (BA), veradorxs querem instituir campanhas contra a interrupção voluntária da gravidez. Nessas propostas, os poderes municipais estariam responsáveis por, durante alguns dias por ano, panfletar a população contra a autonomia dos corpos das mulheres.

Tais iniciativas demonstram o óbvio ululante: não se pode mais dizer que o aborto não é um tema que interesse à sociedade brasileira debater. E, ao mesmo tempo, ele continua sendo uma questão “intocável”. Michel Foucault em sua História da Sexualidade discorre, logo no início, sobre como sexo era um assunto silenciado sobre o qual todo mundo falava prolixamente. Interromper voluntariamente a gravidez no Brasil, guardadas as devidas proporções, pode ser um exemplo similar.

Que jogue a primeira pedra quem nunca ouviu uma história de uma amiga, irmã, companheira, esposa, mãe etc. que cogitou fazer ou fez aborto. Porém, quando isso se torna uma discussão pública, a maioria das pessoas deixa-se ditar por normas cada vez mais repressoras estabelecidas por outrem.

Uma série de fatores contribuiu para estarmos nesse momento: por um lado, o novo boom dos movimentos feministas, em especial via internet, que mantêm como uma de suas principais bandeiras a legalização da interrupção voluntária da gravidez; por outro, o crescimento, concomitante, de segmentos religiosos contrários ao aborto e a perseguição da Polícia Federal às movimentadas clínicas clandestinas, que lucram muito aproveitando-se da ilegalidade e cuja procura aumentou após o fechamento do cerco à comercialização de certo remédio com efeito abortivo.

O debate, sem dúvida, é legítimo. As propostas que estão surgindo nos Legislativos municipais (em Curitiba dos vereadores Chicarelli, PSDC, e Valdemir Soares, PRB, e em Salvador da vereadora Cátia Rodrigues, PROS, vice-presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara Municipal!), porém, não podem impor ao conjunto da população apenas o ponto de vista de determinados agrupamentos religiosos: até que o Cabo Daciolo (contraditoriamente, também do PSOL/RJ) prove o contrário, nossa Constituição é laica e o Estado brasileiro deve zelar pela saúde de todxs (artigo 196). Se as mulheres, em especial as negras e de classes baixas, estão morrendo em decorrência de interrupções de gestação, isso é uma questão de saúde pública. Segundo uma pesquisa com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), cerca de 800 mil mulheres realizam por ano abortos no Brasil, muitos deles feitos de maneira insegura e em condições precárias. Além disso, a interrupção da gravidez já é prevista na lei em caso de estupro e de risco de vida para as mulheres, algo que as iniciativas municipais em tramitação parecem ignorar completamente. Como então as prefeituras poderiam fazer campanha contra um direito que é garantido pelo Código Penal?

Aumentar a repressão, seja pelo discurso ou pelo uso da força, não vai impedir as mulheres de abortar: vai jogá-las ainda mais na clandestinidade.

Que estejamos falando mais e mais sobre interrupção voluntária de gravidez poderia ser o início de uma liberação de tanto tempo de perseguição e a reação de resistência das parcelas mais conservadoras faria sentido nesse cenário. Mas, pensando na configuração política do Congresso e nas manifestações que temos visto nos últimos dois anos, nada permite tal otimismo. O PL de Jean Wyllys, que finalmente tiraria as mulheres das sombras, não tem, por enquanto, perspectivas de ser aprovado. O momento é de cavar trincheiras para manter o mínimo de direitos. E continuarmos falando. Muito. As interdições aos corpos se prolongam. Antes da calmaria, enfrentamos uma longa tempestade.

Aproveito para publicar abaixo uma moção de repúdio ao projeto da vereadora Cátia Rodrigues feita pelxs participantes do XIII Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre Mulheres e Relações de Gênero do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, NEIM, da UFBA:

“MOÇÃO DE REPÚDIO

Nós, participantes no XIII Simpósio Baiano de Pesquisadoras(es) sobre Mulheres e Relações de Gênero do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, NEIM, da UFBA, realizado em Salvador, Bahia, de 25 a 27 de março de 2015, repudiamos o projeto de lei municipal n. 111/14 proposto pela vereadora Cátia Rodrigues, que propõe a criação da campanha municipal anti-aborto em Salvador. Essa proposta fere a autonomia das mulheres sobre sua vida reprodutiva, além de comprometer o exercício do direito, previsto na Constituição Federal, de realização de interrupção de gravidez em casos de estupro e risco de vida para as mulheres.

Não se poder desconhecer que o aborto inseguro é uma das principais causas de morte materna, vitimando especialmente mulheres negras, de classes populares e de outros segmentos étnicos e sociais historicamente desfavorecidos. Defendemos com firmeza a laicidade do Estado e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres!”

Fonte: Carta Capital

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