O Natal da Família Ocupação

Por Priscila dos Anjos, do Maruim. Como os secundaristas que ocuparam a Escola Estadual Azevedo Junior, no litoral paulista, passaram o Natal.

Entusiasmado com a ideia de preparar uma ceia, Matheus Serrão, 19, retirou da geladeira o “frangão” que havia temperado com sal, alho e folhas de louro, horas antes, lembrando dos natais que passou em casa. “Sabe, nessa época de Natal minha mãe não deixava eu chegar perto da cozinha. Dizia que eu não sabia fazer nada ali”. Com um sorriso, completou: “Mas agora vou fazer”. Eram nove horas da noite de 24 de dezembro de 2015, e o estudante do segundo ano do Ensino Médio começava a preparar a ceia para os cerca de 10 amigos que passariam a noite na ocupação da Escola Estadual Azevedo Junior, localizada na cidade de Santos (SP), no litoral paulista.

A cozinha industrial, projetada para o preparo de merenda, há um mês vinha sendo usada por secundaristas para fazer as refeições para os ocupantes da escola. O motivo do protesto foi o projeto de reorganização escolar apresentado pelo Governo do Estado de São Paulo em meados de outubro de 2015 e publicado em Diário Oficial no dia 30 de novembro do mesmo ano. A proposta consiste na divisão das escolas estaduais por ciclos: 1º ao 5º do Ensino Fundamental, 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Neste processo, 94 escolas seriam fechadas em todo o Estado.

Com a reorganização, a Escola Azevedo Junior passaria a atender somente alunos do Ensino Fundamental em 2016. Assim, os 639 estudantes do Ensino Médio seriam realocados na Escola Estadual Primo Ferreira, que hoje já tem967 jovens matriculados.

Contrários à superlotação de algumas escolas, os estudantes que ocuparam a Azevedo Junior retiraram carteiras e cadeiras das salas, e as que sobraram foram organizadas em uma grande roda, do mesmo jeito que assistiram às aulas abertas durante a ocupação.

Na véspera de Natal, o piso branco da cozinha estava limpo. As canecas vermelhas e os pratos azuis de plástico escorriam água ao lado da pia. Uma chaleira e duas grandes panelas de alumínio pairavam sobre o fogão industrial, e o forno aquecia, se preparando para receber o frango.

“Acho que vou cortar umas cebolas para assar junto com o Chester. O que você acha?”. Respondi: “Acho ótimo”.

Naquele momento, larguei a caneta e o bloquinho e me tornei a ajudante do chef, como passei a chamá-lo. Não demorou muito e outros estudantes se juntaram a nós, apoiados no balcão que dava para o pátio da escola, do lado de fora da cozinha. Era o limite imposto pelo “chef”. “Não gosto de ninguém me incomodando quando estou cozinhando”, alertou.

Não só a cozinha estava limpa, mas toda a escola. Foi necessário fazer uma intensa limpeza durante o dia, pois uma forte chuva caíra sobre Santos na noite de 23 de dezembro. Aquele dia amanheceu ensolarado, mas a escola acordou alagada. Por isso, ao som de Tim Maia, sete estudantes com rodos e vassouras na mão suavam limpando o pátio, os banheiros e a cozinha do prédio de dois andares.

Por um descuido, a chuva também molhou os CDs de Bob Dylan, Elis Regina, Bete Carvalho, Tropicalia e Tita Reis, que os estudantes alternavam durante as atividades braçais da ocupação. Secando cuidadosamente disco por disco e os expondo ao sol, o estudante Pablo Bailoni, 17, afirmou: “A gente quer deixar a escola melhor de como estava quando a gente ocupou”.

Como começou

A ocupação havia ocorrido há exatamente um mês e um dia. Pablo narra que por volta das 6h40 do dia 23 de novembro, quando nem o portão da escola estava aberto, ele e três outros estudantes da Escola Estadual Azevedo Junior e dois apoios (como os secundaristas chamam universitários, professores e trabalhadores que os ajudaram durante a ocupação )começaram a panfletar. Vinte minutos depois, quando o portão foi aberto, em vez de entrar nas salas, os estudantes ficaram no pátio da escola para ouvir Pablo e os outros alunos que puxavam a ocupação. “Eu e mais duas pessoas fomos falar o que era a reorganização e porque nós queríamos ocupar”.

Fazia cinco dias que a primeira escola da Baixada Santista havia sido ocupada: a Professor Cleóbulo Amazonas Duarte. Assim como Pablo, a estudante do Ensino Médio Patrycia Menezes, 20, havia acompanhado a ocupação da primeira escola. “Para nós que somos estudantes é muito difícil conduzir uma escola. No primeiro dia, nós não sabíamos o que fazer. Eu até tinha uma base do Cleóbulo, pois estava frequentando a ocupação lá e aprendendo. Mas quando a gente decidiu fazer na nossa escola, foi de um dia para o outro. A gente combinou em uma madrugada e fez de manhã”, lembrou Patrycia.

Naquele primeiro dia de ocupação, os estudantes realizaram uma assembleia às 15h para organizar os grupos de trabalho. “Eu já tinha algumas noções, mas a ocupação está me dando um up. Comecei a entender no Cleóbulo, lá tinha assembleia toda hora” disse Pablo.

No mesmo dia, diferentes formas de apoio começaram a chegar na Azevedo Junior. As doações de alimentos foram feitas desde o início até a véspera de Natal, quando o professor de filosofia João Domingues surgiu com quatro sacolas de compras que garantiriam a ceia de Natal na Escola Estadual Azevedo Junior.

“ Eu falo para os estudantes aqui de Santos, que essa experiência de viver isso, de ocupar um espaço que era deles é importante, mas vai depender da manutenção da experiência, da prática de ações, de eles não se fecharem em si, cada um ajudar o outro. Criar uma força, pois vai ter repressão”. 
João Domingues, professor de filosofia do Educafro

A ceia

Frangão, arroz, maionese e torta de banana. O cardápio estava decidido, e o “chef” começou a prepará-lo colocando o frango no forno e as batatas para cozinhar. O arroz ficou por minha conta.

Quando tudo estava cozinhando, Matheus começou a ler a receita da torta de banana que havia copiado em uma folha de caderno. Ele me delegara a massa, enquanto preparava o recheio. “Me fala quando tiver homogêneo, tá?”.

Fora da cozinha, espiando todo o processo, dois estudantes conversavam:

— Não quero mais ela não. Fica se esfregando em outros ai.

— E tu pode né?

— Mas é claro.

— Pô, cara, tu já ouviu falar em feminismo? Hoje as mulheres não querem homem que nem tu não.

Foi só durante o último mês que os alunos da Azevedo Junior tiveram espaço para discutir machismo, feminismo e racismo na escola. Os debates aconteceram durante as aulas abertas, ministradas por voluntários no pátio.

No mesmo espaço que ocorriam as aulas abertas, paredes antes brancas foram pintadas por artistas independentes com desenhos e mensagens. Ao entrar na escola pela primeira vez, tive a impressão de que aquelas artes sempre estiveram ali. Após questionar Pablo Bailoni, o estudante tratou de esclarecer. “A direção jamais aprovaria [as artes]. Não tinha nada disso antes da ocupação. Mas parece que eles deixaram aquele espaço ali só para a gente pintar”.

“A estrutura dessa escola é a estrutura de uma cadeia. Não tem cor.” 
Patrycia Menezes, estudante do Ensino Médio da Escola Azevedo Junior

Perto das 23h, o arroz ficou pronto. A maionese esfriava na geladeira e, para a minha surpresa, o frangão já estava assado. O chefe explicou que o fogão de cozinha industrial era assim, rápido. Mas a ceia só seria servida à 1h da manhã, horário combinado com aqueles que queriam estar em casa com a família no Natal, mas que depois voltariam à escola. A torta foi colocada no forno, e a cozinha esvaziada. No pátio, Pablo, Matheus e Patrycia começaram a relembrar das aulas de biologia marinha, filosofia, história e teatro que tiveram durante a ocupação:

“Os próprios alunos faziam a aula ser muito legal. O professor de história trouxe assuntos que me davam vontade de fazer uma pergunta a cada dez minutos. Então, a aula ia ficando bacana. Tu vê nos olhos dos teus amigos o interesse às vezes até maior do que o seu” falou Patrycia.

“Eu não gostava de ir à aula mesmo. Às vezes, baixava a cabeça na carteira e não prestava atenção”, confessou Matheus Serrão. “Mas agora que descobri que tenho voz, que posso questionar, não vou ficar mais quieto, não”.

Pablo continuou.“Tu acorda cedo e vem para um lugar onde não acontece nada. Quase todo dia a gente saía na quarta aula, sendo que deveríamos ter seis aulas. Isso quando não saíamos no intervalo, por falta de professor. Quantas vezes eu me perguntei o porquê de estar aqui”.

Por que a revolta não aconteceu antes?

A falta de professor e a estrutura física ruim da escola já existiam antes da ocupação. Por isso, perguntei a eles: Por que não houve revolta antes da ocupação?

“Não despertamos, não despertamos”, respondeu Pablo.

Um mês e um dia após o início das ocupações, eles não só despertaram contra a reorganização escolar, como também contra outros problemas da escola. Mesmo com a revogação temporária da reorganização escolar, os estudantes das três escolas ocupadas na Baixada Santista (Escola Estadual Azevedo Junior, Escola Estadual Professor Cleóbulo Amazonas Duarte e Escola Estadual Professor Renê Rodrigues de Moraes) enviaram uma carta de reivindicações à diretoria de ensino de Santos em 18 de dezembro.

O documento lista as seguintes pautas comuns entre as escolas:

1) Uma nota pública da direção posicionando-se contra a punição ou perseguição dos alunos, professores, funcionários e apoiadores que participaram do movimento;

2) Garantia de que nenhum aluno que participou das ocupações será transferido compulsoriamente de sua escola de origem como forma de perseguição e punição;

3) Garantia de que reformas e alterações estruturais só serão feitas em consenso dos estudantes;

4) Garantia de que o Grêmio Estudantil será uma organização livre e autônoma;

5) Disponibilização imediata do PPP (Projeto Político-Pedagógico) e um compromisso de garantir uma assembleia geral com diretores, professores, funcionários e estudantes para reformulação do referido documento.

Espírito de Natal e de luta

Meia-noite. Apesar de nem todos ali acharem a data importante, aos poucos os dez que esperam a ceia foram se cumprimentando com abraços. Desconhecidos até o início das ocupações, este último mês os tornou companheiros de luta e amigos?—?porque não uma família, como pintaram em um pneu pendurado na árvore do pátio da escola?

“Mas quando a gente voltar, no ano que vem, a gente vai estar junto”, falou Pablo Bailoni. Tomara.

Foto: Reprodução/Maruim

Fonte: Maruim

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