O martírio do Iêmen

Por João Goulão.

As Nações Unidas, a União Europeia, a Casa Branca e respectivos acessórios, com os meios internacionais a reboque, continuam a manifestar um assinalável pudor em abordar o massacre programado e em curso de um país e do seu povo – o milenar Iêmen. Centenas de milhares de pessoas, locais histórico e de culto, escolas e hospitais, os primeiros arranha-céus da história da humanidade, infraestruturas e bens económicos são os alvos indiscriminados de bombardeamentos que duram há dois anos – na atual fase de guerra – sob o pretexto de devolver a presidência a um indivíduo, Abd Rabdo Mansur Hadi, cujo mandato colaboracionista expirou e que resolveu entretanto remeter-se ao aconchego dos seus patrões sauditas.

Quando lemos, ouvimos ou vemos uma daquelas profundíssimas notícias que nos servem como informação, explicam-nos que a guerra do Iêmen existe para que Hadi seja devolvido à presidência, usurpada pelas milícias xiitas Ansar Allah dos hutis, sustentadas pelo Irão, em coligação com os sunitas da região de Sanaa (capital) do ex-presidente Abdullah Saleh, apoiados pelo exército regular. Trata-se, acrescentam, de uma questão de «legitimidade». E tudo fica explicado, para sossego dos espíritos que se consideram informados pela gritaria das notícias ao minuto.

Porém, há muito mais para saber, sobretudo se quebrarmos o pudor que manieta a ONU, a União Europeia, a Casa Branca e respectivos acessórios. E quanto mais aprofundarmos o conhecimento mais entenderemos a essência desse recato, a que, sem quaisquer problemas de objetividade, poderemos chamar cumplicidade no massacre.

O Iêmen é um teatro de guerra e também um laboratório de estratégias. Para Barack Obama, por exemplo, serviu de espaço para teste da sua guerra dos drones, quando se assumiu como assassino serial e montou uma plataforma de execuções extrajudiciais sob o pretexto de liquidar terroristas.

A fase de guerra em curso há dois anos junta múltiplos objetivos, pretensões e ambições que transformam os supostos direitos do «presidente» Hadi num grão de areia do mais vasto dos desertos.

O mais vasto dos desertos é o temível e temido, mas também ambicionado Rub al-Khali (o quarto vazio), repartido entre a Arábia Saudita e o Iêmen mas do qual a petromonarquia pretende o controlo total. Segundo peritos norte-americanos, as tórridas areias escondem reservas imensas de petróleo e gás natural.

A guerra contra o Iêmen é conduzida por uma vasta coligação de exércitos do Conselho de Cooperação do Golfo (exceto o Omã), a que se juntaram tropas da Jordânia, do Sudão, de Marrocos, com apoio do Egipto e Paquistão. Como o Conselho de Cooperação do Golfo é uma sucursal regional da OTAN, e se conhecem muito bem as vocações civilizacionais e ocidentais das ditaduras do Golfo, os agressores do Iêmen contam como o apoio ativo dos Estados Unidos e de países da União Europeia, pelo menos a França e o retirante Reino Unido.

Do lado iemenita juntaram-se as forças leais ao antigo presidente Ali Abdullah Saleh e as milícias hutis Ansar Allah, inicialmente com maior implantação no norte do país. Apesar de terem características político-religiosas, estes grupos aceitam colaborar com organizações seculares, neste caso o Partido Socialista Iemenita, muito forte na zona petrolífera do sul do país. A resistência conta ainda com o aparelho do exército regular iemenita, entretanto unificado perante as contingências da agressão externa.

Nos últimos meses avolumaram-se as informações segundo as quais a Rússia poderá estar secretamente no terreno. Um dos avançadíssimos catamaran para águas revoltas, orgulho da marinha dos Emiratos Árabes Unidos, foi atingido em Outubro passado por engenhos de uma geração tecnológica que parece não estar ao alcance dos hutis ou do exército iemenita.

Para vencer esta guerra – o que parece não estar ainda ao seu alcance – a Arábia Saudita mobilizou 100 mil homens, entre os quais muitos já desertaram, e 100 bombardeiros. A força aérea saudita caracteriza-se por duas particularidades interessantes: tem mais aviões de guerra britânicos que a Royal Air Force; e entregou os comandos de algumas das suas naves a experientes pilotos israelenses – passando assim à prática as excelentes relações existentes entre o fascismo islâmico saudita e o fascismo sionista que tomou conta do governo de Israel.

Por isso, a guerra contra o Iêmen assumiu as características tenebrosas do tipo de ataques israelenses contra Gaza: acções assentes em bombardeamentos cegos e sem oposição, evitando, por outro lado, os problemas da invasão terrestre. A Arábia Saudita procura evitar envolver-se numa guerra no solo, tendo em conta as más memórias da derrota sofrida em 2009.

Deste modo, a presença militar do agressor no terreno foi entregue, principalmente, a mercenários de companhias de segurança de bandeira norte-americana, como a terrorista e desqualificada Academi/Blackwater. Ao que consta, o processo não tem corrido bem porque os pagamentos não chegam a tempo e horas, em parte devido a uma alegada crise financeira em Riade. A Academi retirou-se para entrar a Dyn Corp, do Grupo Cerberus, dirigido pelo israelita Steve Freinberg e pelo antigo vice-presidente dos Estados Unidos, Dan Quayle.

Outra infiltração ao serviço da coligação agressora é a al-Qaida, que proclamou o «califado» de Makallah no sul do Iêmen e procura contrabalançar, nessa região, o peso popular do Partido Socialista.

O petróleo é, como já se percebeu, uma das principais razões da agressão continuada contra o Iêmen independente. Além dos recursos do próprio país estão também em jogo as citadas reservas de petróleo e gás no deserto de Rub al-Khali, a circulação do tráfego petrolífero pelo estratégico estreito de Bab el-Mandeb e ainda o acesso às presumíveis reservas de combustíveis fósseis do Ogaden, em relação às quais os Estados Unidos e aliados jogam todas as fichas na cumplicidade da submissa Etiópia e respectiva contribuição para o controlo do Corno de África.

Além da habitual presença fiscalizadora da quinta Esquadra norte-americana, com base no Bahrein, também submarinos israelenses vigiam o Mar Vermelho, enquanto a França, baseada no Djibuti, contribui para a patrulha do estreito de Bab el-Mandeb.

O controle dos interesses externos sobre o Iêmen é ainda fundamental para a concretização do velho sonho colonial e das mil e uma noites que é a «cidade luz» al-Noor, idealizada pelas ditaduras do Golfo em colaboração com Israel que, recorda-se, tutela já o Estado fantasma da Somalilândia no Corno de África.

O projeto al-Noor é olhado como uma promissora plataforma de expansão comercial e econômica das potências do Médio Oriente, incluindo Israel, visando exponenciar a sua influência sobre a costa Oriental de África e o subcontinente indiano. A obra emblemática desta realização seria a ponte sobre o Bab el-Mandeb ligando a Península Arábica a África entre duas cidades denominadas al-Noor: uma no sul do Iêmen, outra em Djibouti. A execução do empreendimento foi putativamente atribuída à empresa da família saudita Bin Laden.

À concretização destes projetos ergue-se uma pequena barreira: o Iêmen continua a recusar-se a ficar sob a pata da ditadura saudita. Por isso, o martírio iemenita prossegue, protegido pelo falso pudor das Nações Unidas, da União Europeia, da Casa Branca e respectivos acessórios.

Fonte: Abril Abril.

 

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