“O lobo pode perder seus dentes, sua natureza jamais”

Por Mírian Gonçalves.

Michel Temer e parlamentares proporcionaram aos brasileiros um retorno a tempos sombrios da nossa história recente, que muitos preferiram esquecer. Por proposição do Deputado Federal Esperidião Amin (PP-SC), foi aprovada e, em seguida sancionada, a Lei 13.491/2017 que modifica o art. 9º. do Decreto-Lei 1001 de 1969 para atribuir à Justiça Militar a competência para processar e julgar militares das Forças Armadas que cometam crimes dolosos (com intenção) contra a vida de civis.

Distraidamente, poderíamos pensar que se trata de livrar-nos dos resquícios do autoritarismo, no entanto, foi modificado para se tornar o mesmo de 48 anos atrás, época da mais acirrada ditadura militar. Os termos da nova lei são muito simples, não passam de 15 linhas, algumas referências e apenas um artigo. Quase nada, não fossem as implicações terríveis que pode acarretar e o simbolismo desse ato. É importante a contextualização histórica para que as afirmações não sejam tomadas por levianas.

Em 1967, havia-se delegado aos Tribunais Militares processar e julgar civis que praticassem crimes contra a Segurança Nacional. O Decreto-Lei 314 de março de 1967, dispunha no art. 44 que ficavam “… sujeitos ao foro militar, tanto os militares como os civis, na forma do art. 122, § 1º e 2º, da Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967, quanto ao processo e julgamento dos crimes definidos neste decreto-lei, assim como os perpetrados contra as instituições militares”.

Eram considerados crimes para esse efeito, qualquer tipo de protesto contra a “ordem vigente”, incluindo, na forma dos termos utilizados, a “ditadura de classe”, a “guerra psicológica”, “prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva” e melhor especificado em dois parágrafos do art. 3º:

2º: “a guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais”. E continua no § 3º: “a guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação”. O regime militar deixou explícito que todos os movimentos populares, de qualquer ordem, constituíam-se em ação contrária à Segurança Nacional, submetendo seus atores ao poder militar.

Nos anos seguintes, agravou-se a situação. A sociedade brasileira estava sob o julgo do Ato Institucional no. 5 (AI 5 de 13 de dezembro de 1968), a norma mais violenta da repressão, utilizada para suprimir todos os direitos civis e políticos, fechar as Casas Legislativas do país, intervir em estados, cidades, sindicatos, partidos políticos. Nessa conjuntura, foi promulgado o Decreto-Lei 898 de setembro de 1969, a nova – Lei de Segurança Nacional – que instituiu, entre outros, as penas de morte e prisão perpétua, curiosamente aplicadas também a “assalto, roubo e depredação” de “estabelecimentos de crédito ou financiamento” (somente modificada em 1978).

Igualmente em outubro de 1969, editaram o AI6 e os Decretos-Leis 1001, 1002 e 1003, mantendo a competência da Justiça Militar da União para julgar crimes cometidos por militares contra civis.

Apenas com a Constituição Federal de 1988 foi derrogada a malfadada norma e reduzida a competência da Justiça Militar (art. 124 da CF/88) excluindo a segurança nacional que passaria a ser julgada pela Justiça Federal. Mesmo assim, a discussão não cessou até que a chacina do Carandiru, com suas 111 mortes, indignou o mundo, e por essa razão foi apresentado, em maio de 1992, projeto que se tornou a lei 9.299 de agosto de 1996, alterando o art. 9º. do Código Penal Militar, com a inserção do parágrafo único para que crimes dolosos contra a vida de civil fossem de competência da justiça comum.

Os argumentos dos integrantes da Polícia Militar à época, em defesa da corporação, não deixam dúvidas quanto à necessidade e à importância de que todos estejam sujeitos às mesmas leis, à mesma justiça, inclusive submetidos ao Tribunal do Júri, em se tratando de crime comum.

Fato é que a nova alteração da era Temer fará do civil duas vezes vítima. A primeira, pelo crime praticado contra ele e a segunda, pelo julgamento do criminoso por sua corporação.

O que pode justificar tal medida? Nenhum argumento apresentado é plausível ou tem lógica transparente.

No momento que clamam pela extinção do foro especial para cargo político, cria-se a excepcionalidade. Enfatizo: crimes comuns dolosos previstos no Código Penal, praticados por militar das Forças Armadas contra civis serão julgados pela Justiça Militar. Não é crime de deserção, não é crime da caserna. É contra a vida dos comuns.

Feita a primeira crítica surge a interrogação: o texto legal aponta como exceção a sua aplicabilidade, em caso de “atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou atribuição subsidiária”. Mas estariam, as possibilidades verdadeiramente enumeradas?

Não! Por que, afinal o que é a garantia da “lei e da ordem ou de atribuição subsidiária”? É a repressão aos traficantes na Rocinha ou no Morro do Boreu, com licença para matar? Ou se tratam também das manifestações do MST, MTST, dos Sindicatos, dos partidos políticos? A interpretação fica sujeita à discricionariedade do Presidente da República e do Ministro da Defesa.

Será revigorada a lei de Segurança Nacional de outubro de 1969? Há defensores, pasmem, da lei sancionada em 1983 pelo general João Figueiredo, mesmo que em seu texto ainda remanesçam expressões como “luta violenta entre classes”.

Sórdido é o argumento da atualização das leis quando só vemos retrocesso. Todas as justificativas nos remetem ao regime ditatorial.

Passo a passo, com os mesmos parceiros, rumamos para o mesmo fim?

A ninguém é dado o direito de pensar em solução possível que não seja pelos meios democráticos.

A democracia deve ser defendida a qualquer custo.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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