O impacto das novas tecnologias nas sociedades tradicionais

carlos_frederico_mares_01Facilmente absorvidas pelas culturas, as tecnologias nem sempre promovem alterações internas negativas, diz Carlos Marés à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Formado em Ciências Jurídicas, com especialização em direito dos povos indígenas, ele acentua que as novas tecnologias, a exemplo do celular, da internet “entram naturalmente nas culturas indígenas como uma nova forma de conhecimento”. Segundo ele, “alguns anos atrás se dizia que os grupos indígenas iriam perder a sua identidade por causa das tecnologias, mas hoje está cada vez mais claro que isso não é verdade. Ao contrário, estamos vendo que as comunidades estão se coletivizando. É curioso que, via tecnologia, estão criando novas comunidades virtuais”. E acrescenta: “Um grupo indígena só perde sua qualificação de indígena quando perde a sua característica comunitária. Se essa tecnologia leva a uma perda da identidade comunitária, ela destrói a cultura. Do contrário, não”.

A dificuldade na relação entre tecnologias e culturas tradicionais está, segundo ele, atrelada à apropriação que a ciência e a indústria fazem dos conhecimentos tradicionais para desenvolver novos produtos e lucrar com eles. “Os índios não se opõem à expansão do conhecimento, mas ao fato de que uma empresa pegue esse conhecimento e o transforme em uma propriedade privada individual, que cobra dos outros pelo uso, enquanto eles não cobram. Trata-se, portanto, de uma questão interna do capitalismo”, assinala.

Carlos Marés estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quinta-feira, 15-08-2013, ministrando duas palestras sobre os temas abordados na entrevista: A territorialidade Guarani e o reconhecimento de seus direitos, às 17h30, e O impacto das novas tecnologias nas sociedades tradicionais, às 19h30, a qual faz parte da programação do II Seminário – XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades.

Marés é graduado, mestre e doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É procurador do Estado do Paraná desde 1981. Integra o Programa de mestrado e doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde é professor titular de Direito Agrário e Socioambiental. Foi presidente da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Procurador Geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, e diretor do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul. É sócio fundador do Instituto Socioambiental-ISA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a cultura indígena dialoga com as novas tecnologias?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – É impossível falar de “cultura indígena”; só no Brasil são mais de duzentas se considerarmos cada povo uma cultura. Pode-se dizer que cada povo reage de forma diferente a diferentes manifestações da tecnologia moderna. Entretanto, o diálogo sempre é possível e, embora haja admiração pelo desconhecido, há uma curiosidade de como fazer as coisas da tecnologia.

Conta André Villas Boas que, sendo professor de crianças numa aldeia Xavante, foi questionado pelos mais velhos quando iria ensinar os meninos a fazer avião. Essa é uma diferença fundamental em alguns povos. Todos, praticamente, sabem fazer tudo, sempre há diferenças de habilidades, mas o saber fazer é comum, muito diferente da atual tecnologia baseada na divisão hermética do trabalho, em que cada um sabe apenas o pedacinho do todo.

Curiosamente esta cultura do pedacinho promove um individualismo interno muito grande, que diferencia essencialmente a chamada civilização das culturas coletivistas da América. Porém nem todas as culturas americanas são absolutamente coletivistas, há divisões de trabalho, em geral por grupos de pessoa.

IHU On-Line – Como as novas tecnologias impactam as sociedades tradicionais? Na sua avaliação, a introdução de determinadas tecnologias contribuem para a destruição da cultura tradicional indígena?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Não é de todo correto pensar que as tecnologias do século XXI, eletrônicas, digitais ou químicas, sejam mais impactantes do algumas mais antigas, como, por exemplo, o machado e o facão de ferro ou aço nas sociedades tradicionais que não as conheciam. Basta imaginar o que é fazer uma casa sem um bom facão ou machado, utilizando apenas instrumentos de pedra, por mais polida que seja. Estes instrumentos diminuem consideravelmente o tempo necessário para a produção de bens de uso e consumo, como alimentação, vestuário e moradia, sobrando mais tempo para as atividades lúdicas, assim como aumenta a capacidade humana de modificação da natureza. Essas tecnologias são facilmente absorvidas pelas comunidades e promovem alterações internas não necessariamente negativas.

Se pensarmos em tecnologias mais sofisticadas, como telefonia celular, por exemplo, é muito interessante, gera muita curiosidade, mas não altera necessariamente o sistema produtivo da comunidade. Os maiores impactos, portanto, são aqueles que alteram a maneira como a comunidade produz ou pode produzir seus bens de consumo e uso. O encontro de duas culturas, porém, é sempre impactante. Algumas vezes a arrogância não permite que um veja as soluções do outro, foi o que aconteceu com espanhóis que entraram em contato com a muito desenvolvida cultura andina. A tecnologia de construção andina, chamada Inca, aproveitava a energia solar de tal forma que refrescava as quentes regiões baixas e mantinha o calor nas casas nas altitudes, assim como aproveitava as áreas geladas para conservar alimentos. Toda essa tecnologia foi desprezada pelos espanhóis e somente agora está sendo recuperada como tecnologia sem impacto negativa ao meio ambiente.

IHU On-Line – O senhor menciona casos em que a indústria química se utiliza de conhecimentos indígenas para desenvolver novos produtos. Como acontece esse processo?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – A indústria química, especialmente a farmacêutica e a de cosmética, têm se utilizado de conhecimentos tradicionais para desenvolver produtos. Até metade do século XX, a indústria desprezava esse tipo de conhecimento, porque achava que tinha capacidade de descobrir novos produtos sozinha, uma vez que o o escaneamento da natureza estava conhecido. Da metade do século XX em diante, a indústria começa a ver que alguns conhecimentos tradicionais são fontes preciosas de elementos químicos capazes de fazer transformações, curas, melhoras estéticas etc.

Houve, portanto, a partir de então, uma pirataria desse tipo de conhecimento, não somente em relação ao conhecimento dos indígenas brasileiros, mas também das comunidades que vivem na Índia, na china, na Indonésia. Os cientistas passaram a verificar, através do conhecimento tradicional, para que são utilizadas determinadas plantas, animais, ou frutos da natureza, com um sentido curativo. A ciência toma para si esses conhecimentos. Um deles é o curare, um produto natural que relaxa os músculos, e que alguns índios da Amazônia utilizavam para o envenenamento dos animais, que adormeciam quando atingidos pelas flechas embebidas de curare. A ciência utilizou o curare e nunca atribuiu aos índios o conhecimento.

A partir da metade do século XX, a ciência começou a ter uma direção voltada para o patenteamento do conhecimento individual, o qual passa a ser dominado pelo cientista ou pela empresa que financiou o descobrimento de tal conhecimento. O fundamento do processo de patente e a individualização do conhecimento começam a abrir um leque amplo entre o produtor do novo bem (remédio, cosmético), em relação ao conhecimento tradicional que é coletivo. Como há uma monetarização desse conhecimento através da patente, há um “roubo” muito maior de bens que poderiam ser voltados à comunidade mundial.

Para os indígenas, alguns conhecimentos são sagrados, voltados apenas a alguns iniciados, como os pajés. O manejo de alguns elementos da natureza só pode, portanto, ser feito por eles, porque foi transferido de geração para geração. Então, a abertura desse conhecimento para todo mundo significa uma violação ao sagrado e algumas culturas se sentiam absolutamente incomodadas com a interferência cientifica. Outros conhecimentos, no entanto, não eram sagrados, a exemplo do curare. Quando o conhecimento é geral, a cultura não se sente lesada por outros usarem. Então, as reações são muito diversas.

IHU On-Line – Como é possível que esse conhecimento tradicional dialogue com a tecnologia para que seja expandido?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – A utilização de determinados conhecimentos não é considerada um roubo, porque são conhecimentos da humanidade. Essa ideia está presente nas comunidades indígenas. O problema reside no fato de que esse conhecimento é individualizado, patenteado e a própria população que detinha o conhecimento anteriormente, não pode utilizá-lo, porque ele se transformou num bem mercantil que deve seguir regras especificas, entre elas, a de que somente um fabricante pode comercializar. O problema é quando se exclusivisa o conhecimento. Enquanto o conhecimento é coletivo e coletivizado, não há problema. Este surge justamente quando ele passa a ser apropriado por um, e negado a outros, a não ser por pagamento.

Os índios não se opõem à expansão do conhecimento, mas ao fato de que uma empresa pegue esse conhecimento e o transforme em uma propriedade privada individual, que cobra dos outros pelo uso, enquanto eles não cobram. Trata-se, portanto, de uma questão interna do capitalismo. Como resolver essa questão? As empresas detentoras da patente argumentam que investiram para descobrir determinado conhecimento – para descobrir que os índios sabiam -, e podem ressarci-los. Por outro lado, os índios dizem que o conhecimento não deve ficar na mão de uma pessoa que lucre com ele.

A solução óbvia que nos ocorre é que as empresas paguem um valor para os indígenas e, a partir dessa ideia, surge na legislação a repartição de benefícios. Mas essa repartição não basta, porque os índios não querem receber nada, e aí fica uma discussão maluca.

Surge, então, uma compreensão de que quem detém o conhecimento tem de saber o que fazer com ele. Nessa ideia há duas visões que estão vinculadas: o conhecimento prévio e, portanto, a aceitação da comunidade de que ele será usado para determinados fins e, segundo, a distribuição dos benefícios.

O mais difícil nessa relação é obter o conhecimento prévio e informado, porque os pesquisadores e as empresas ocidentais alegam que não podem dizer o que querem com determinado conhecimento, porque se disserem sem ter uma patente, outro pode roubar esse conhecimento. Como o mercado está se apropriando de um conhecimento que está fora do mercado, o próprio mercado não pode saber o que está acontecendo, porque quem patenteia primeiro é o dono do conhecimento. Por isso, normalmente o conhecimento prévio não é informado. Essa é uma relação difícil e tem dificultado as relações entre os conhecimentos tradicionais e as tecnologias.

IHU On-Line – Quais são as tecnologias utilizadas pelas comunidades indígenas? Como eles compreendem o uso da tecnologia para divulgar sua cultura?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Como estamos tratando de seres humanos com iguais capacidades e diferentes informações, temos de dizer, em primeiro lugar, que todos são capazes de aprender tudo. Nesse caso, o ocidente aprende menos os conhecimentos dos índios do que o contrário. Nem eu nem você somos capazes de produzir um telefone celular, portanto, o compramos pronto na loja. Então, a nossa ignorância acerca desse objeto é absoluta, e aprendemos a utilizá-lo.

O mesmo acontece com as comunidades indígenas. Num primeiro momento podem não saber para que determinada tecnologia serve, e depois que descobrem que ela pode ser útil para se comunicarem com outros, aderem. Quem não quer ter um celular para se comunicar com os outros? Então, essas tecnologias entram naturalmente nas culturas como uma nova forma de conhecimento. Isso altera as comunidades, sim, porque todo novo conhecimento altera uma cultura, mas os impactos variam de acordo com a cultura no sentido de que às vezes há uma ânsia por conhecimento e novas tecnologias, enquanto em outra cultura há um distanciamento.

O impacto mais destrutivo numa cultura ocorre quando o grupo indígena se individualiza ou descoletiviza da sociedade. Um grupo indígena só perde sua qualificação de indígena quando perde a sua característica comunitária. Se essa tecnologia leva a uma perda da identidade comunitária, ela destrói a cultura. Do contrário, não. A cultura agrega mais um conhecimento sem destruir a sua identidade. Alguns anos atrás se dizia que os grupos indígenas iriam perder a sua identidade por causa das tecnologias, mas hoje está cada vez mais claro que isso não é verdade. Ao contrário, estamos vendo que as comunidades estão se coletivizando. É curioso que, via tecnologia, estão criando novas comunidades virtuais.

IHU On-Line – Como tem ocorrido o processo de inclusão digital nas comunidades indígenas brasileiras?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Em geral no Sul há uma inclusão digital especialmente dos kaingangs. Se você chega numa aldeia kaingang, tem sinal e um telefone celular. Na região amazônica a situação é mais complicada, inclusive porque tem áreas muito grandes que não são sanadas por um ou dois pontos de acesso a telefone. Às vezes as comunidades têm acesso, mas não têm aparelhos para utilizar.

IHU On-Line – Qual é a situação dos guarani em torno da territorialidade e seus direitos?

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – A grande novidade da história é a visibilidade da reclamação guarani. Eles estão em contato com a sociedade colonial há mais de 500 anos, têm uma cultura muito densa e sempre tiveram a ideia de que a terra é um bem que nunca irá acabar, por isso todos podem utilizá-la. Contudo, essa ideia, no século XX, foi ultrapassada, porque vemos hoje uma carência de terra no mundo. A partir da segunda metade do século XX, os guarani passaram a ficar enclausurados em pequenos pedaços de terras e inclusive usaram terras dos kaingangs, mas acabaram ficando sem território.

Além disso, eles sempre foram tratados pelos brasileiros como paraguaios, e esse estigma foi destruindo seus territórios. Nos últimos 20 anos há um retorno dos guarani pela busca de seus territórios. Os guarani sempre foram invisíveis e agora que passaram a reivindicar seus direitos, passaram a ser visíveis. Essa disputa pela terra tende a ser violenta, mas é preciso deixar claro que eles não estão praticando violência, e sim sofrendo. Eles estão reagindo, como sempre reagiram.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos.

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