O Holocausto cigano durante a Segunda Guerra Mundial

A palavra Holocausto é comumente relacionada ao genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, os povos ciganos também foram vítimas dos nazistas durante o conflito. O episódio ganhou o nome de “Baro Porrajmos”. Essa memória vem sendo discutida e requalificada desde os anos 1970.

Por Douglas Neander Sambati.

O assassinato de judeus durante a Segunda Guerra Mundial está vivo no imaginário popular, muito graças aos inúmeros filmes que representam esse momento histórico. Nas aulas de História, o tema também tem sido abordado nos livros didáticos, que geralmente exibem imagens de pessoas presas nos Campos de Concentração e de Extermínio, normalmente com a estrela de Davi atada as roupas. Nos últimos anos, também tem sido possível encontrar em boa parte dos livros didáticos trechos de textos pontuando que o regime nazista também perseguiu opositores políticos, homossexuais e ciganos. Contudo, o espaço dedicado a esses grupos ainda é pequeno. O objetivo deste artigo é discutir como a perseguição do povo cigano pelos nazistas vem sendo tratado na historiografia e em discursos de memória.

Ciganos
Ciganos são detidos para deportação, pelo governo alemão, em 22 de maio de 1940. Foto: Bundesarchiv, R 165 Bild-244-48 / CC-BY-SA 3.0

Uma carta de 24 de março de 1938, enviada à Heinrich Himmler pelo Doutor Werner Best, pedia atenção para a “o início da solução definitiva do problema cigano a partir de um ponto de vista racial1”. Para a burocracia do Terceiro Reich, a “solução definitiva” era a erradicação das populações ciganas. Milhares de pessoas foram sistematicamente perseguidas e mortas durante a Segunda Guerra por serem ciganas ou por serem assim consideradas pelos perpetradores nazistas. Apesar de planificada e metódica, a perseguição aos ciganos teve, contudo, diferentes características, dependendo da região onde eles residiam e da relação entre o governo local e a autoridade nazista. Em geral, a violência era mais direta nos territórios ocupados pelos nazistas. Nos países que contavam com um governo pró-nazifascista, as ações eram mais difusas, porém não menos hediondas.

Diferentes formas de perseguição

Na região da atual Polônia, por exemplo, a população cigana vivia mais apartada das cidades e da população não romani, apresentando um estilo de vida menos sedentarizado. Assim, foi comum a criação de companhias militares que caçavam os ciganos e os assassinavam diretamente no local, logo que os encontravam. Atualmente, o Museu Etnográfico de Tarnów/Polônia organiza viagens aos locais onde ciganos foram mortos.

Diferentemente da Polônia, a Romênia não foi ocupada pelo exército nazista. O país era governado por Ion Victor Antonescu, um soldado e político conectado com os ideais nazifascistas. Sob a liderança de Antonescu os ciganos – assim como judeus e outros grupos perseguidos – foram deportados para a região da Transnístria (atualmente porção sudoeste da Ucrânia e leste da República da Moldávia). Lá, os deportados foram ou assassinados ou abandonados à própria sorte, muitos morrendo de fome e frio.

No caso da antiga República Tchecoslovaca, ocupada pelo exercito nazista em 1938, a perseguição aos ciganos conheceu duas realidades. O país fora dividido em duas partes pelos nazistas: a parte que corresponde a atual República Tcheca foi chamada de Protetorado da Boêmia e da Morávia, enquanto o território da atual Eslováquia foi elevado ao status de estado independente, sob tutoria nazista. Na área do Protetorado, os ciganos foram levados para dois Campos de Concentração – Lety e Hodonín u Kunštátu – específicos para essa população. Muitos homens, mulheres e crianças morreram nesses locais devido às más condições de higiene e do trabalho forçado. Porém, depois de 1942, os prisioneiros dos Campos de Concentração tchecos foram levados para outros Campos para execução, principalmente Auschwitz-Birkenau II. Apenas 10% da população roma que vivia no Protetorado da Boêmia e Morávia sobreviveu à Guerra. Já na Eslováquia, a burocracia estatal nazista acreditava que haveria tempo para resolver o “problema cigano” no futuro. Desse modo, a população romani eslovaca escapou do assassinato sistemático, o que não quer dizer que não tenha sofrido violência racial cotidianamente.

A crueldade contra os povos ciganos na Europa foi tamanha durante o período da Segunda Guerra Mundial que, na língua utilizada por uma parte da população cigana, eles chamam o Holocausto de Baro Porrajmos, que pode ser traduzido em português como Grande Consumação da vida humana. Segundo Ian Hancock, Porrajmos é uma palavra muito dura, que pode ainda significar estupro e, por essa razão, falantes da língua romani hesitam em pronunciar.

Esquecimento e requalificação do Holocausto cigano/romani

Na historiografia, o Porrajmos foi e ainda é negligenciado de uma maneira geral. Se logo depois do fim da Segunda Grande Guerra já se iniciaram discussões sobre o genocídio judeu, a execução em massa dos ciganos demoraria para ganhar visibilidade. Entre as razões que levaram a esse “esquecimento” do Porrajmos, podemos citar as diferentes estratégias de genocídio que dificultavam conectar as histórias, a força político-econômica cigana (bastante inferior à judaica) e, talvez o mais relevante, a negação por parte das autoridades do lado vitorioso de que ciganos foram alvo por sua condição étnica. Afirmava-se que a população romani havia sido alvo porque seriam “antissociais”, porque seriam pessoas que viviam à margem da sociedade, sobrevivendo de pequenos crimes e fazendo uso de bruxaria; enfim, se utilizavam de todo e qualquer outro estereótipo que servisse para desqualificar socialmente e culturalmente o grupo como um todo.

Mulher cigana com um policial alemão e o psicólogo nazista Dr. Robert Ritter. Foto: Bundesarchiv, R 165 Bild-244-71 / CC-BY-SA 3.0

O reconhecimento do Porrajmos só começou a ganhar destaque na década de 1970. No dia 8 de abril de 1971, durante o 1º Congresso Mundial Romani2, realizado em Londres, decidiu-se formar uma comissão para esclarecer os crimes contra povos ciganos durante a Segunda Guerra Mundial. A partir deste marco, a luta pelo reconhecimento do Porrajmos tornou-se uma força motriz dos movimentos sociais romani3, que visam também lutar contra o preconceito, contra o Anticiganismo (particular forma de racismo que atinge tanto ciganos como pessoas tidas como ciganos) e o reconhecimento dos ciganos como uma nação.

A requalificação da memória sobre o Porrajmos nessa época se deve muito a uma movimentação nacionalista romani, que buscava – e ainda busca – o reconhecimento dos povos conhecidos como ciganos como uma população que tem sua própria cultura e modo de viver. Esse movimento nacionalista romani não é um movimento coeso, isto é, ele não age conjuntamente como um bloco. Trata-se mais de uma ideia que flutua em torno de vários movimentos sociais, ONGs e autarquias governamentais que trabalham contra a exclusão econômico-social cigana e o Anticiganismo. Contudo, apesar de um tanto quanto abstrato, o conceito sobre os ciganos como uma nação baseia-se em uma origem comum na região onde hoje é a Índia, no compartilhamento de uma cultura e uma língua romani, e na celebração da memória do Porrajmos. Em outras palavras, a memória da violência sofrida como grupo alimenta uma retórica utilizada por uma elite intelectual romani na tentativa de desenvolver um sentimento de proximidade entre os culturalmente plurais grupos ciganos.

Contradições da Memória

A historiografia tem apontado algumas contradições neste processo de requalificação da memória. O fato de que ciganos foram alvo do governo nazista é inegável, mas o motivo da perseguição ainda levanta discussões. De forma sucinta, pode-se dizer que existem duas linhas de análise: uma delas afirma que os ciganos foram alvo por serem um grupo étnico que os nazistas visavam destruir4, enquanto a outra acredita que os nazistas queriam destruir os ciganos justamente porque eles não seriam mais um grupo étnico, e sim um problema social5.

Enquanto a primeira é mais clara por se aproximar do caso judeu, a segunda necessita de mais explicações: alguns autores afirmam que o projeto de destruição dos ciganos se deu porque os nazistas acreditavam que eles também teriam origem ariana, mas não teriam conseguido manter a pureza racial ao longo de sua história.6 Assim, o caso do racismo contra os povos ciganos seria o inverso do antissemitismo (racismo contra os povos judeus): enquanto os judeus eram assassinados por serem uma raça (pura) inferior, os ciganos seriam mortos por não serem mais puros e, por isso, apresentarem um comportamento criminoso, nômade e antissocial.

Monumento aos ciganos assassinados em Borz?cin, Polônia. Foto: Zygmunt Put.

Essas diferentes abordagens podem trazer complicações na instrumentalização da memória do Porrajmos como retórica aglutinadora dos povos ciganos, mas não negam a violência destinada a essas populações pelos nazistas. Contradições e usos políticos da memória não são novidades e não podem ser confundidos com falsificação da memória. Movimentos nacionalistas que legitimaram vários Estados-Nação que temos hoje em dia usaram artifícios similares. Para cada história e/ou característica que se memora e enfatiza, há tantas outras que são “esquecidas”7. O que se “lembra” e o que se “esquece” está menos conectado ao que de fato aconteceu e mais ligada às necessidades sociais, políticas e econômicas em que uma sociedade está inserida.

Hoje a população romani é, em geral, economicamente mais vulnerável e vem sendo utilizada como “bode expiatório” para o crescimento dos partidos de extrema-direita na Europa. Esses grupos, que flertam com o fascismo, ecoam estereótipos dos ciganos como um grupo biologicamente conectado à criminalidade e incivilizados, de maneira muito semelhante ao que se viu no passado. Não esquecer o que se passou durante a Segunda Guerra Mundial pode ajudar a não repetir os mesmos passos e evitar novas injustiças contra os povos ciganos.


Notas

1 HANCOCK, I. 1938 and the Porrajmos: A Pivotal Year in Romani History. Centre for World Dialogue. Global Dialogue, v. 15, n. 1, p. 106–117, 2013. p. 107.

2 Ainda neste congresso foi decidido que a palavra cigano – e seus correlatos em outras línguas como Zigeuner (alemão), ?igani (romeno), Cikáni (tcheco), Gypsy (inglês) e etc. – não deveria ser utilizada para nomear essas populações. Entre as razões, principalmente por ser um conceito que não existe na língua romani e, a partir do ponto de vista dos participantes do congresso, por estar carregada de conotações negativas e preconceitos. A palavra roma (singular rom, adjetivo romani) foi escolhida por essa elite intelectual para representar esses povos e, desde então, tem sido cada vez mais utilizada por governos, acadêmicos e ONGs. No Brasil – embora não sempre, não em todo lugar e não da mesma maneira – ciganos e roma são utilizados como sinônimos. Contudo chama-se a atenção para o fato de que essa requalificação de ciganos como roma é bastante complexa. É preciso ter em consideração a pluralidade cultural, social, econômica e política de todos os grupos que são geralmente chamados de ciganos pela população geral.

3 A palavra romani é comumente usada como sinônimo do “povo cigano”.

4 HANCOCK, I. We are the Romani people / Ame Sam e Rromane dz?ene. Hertfordshire: University of Hertfordshire Press, 2005.

5 MAYALL, D. Gypsy identities, 1500-2000: from Egipcyans and Moon-men to the ethnic Romany. London: Routledge, 2004.

6A (pseudo) ciência nazista concordava com estudos do século XIX e início do século XX que apontavam uma origem indiana para todos os ciganos. Isso fazia da população romani um povo com origem ariana, assim como se nomeavam os nazistas. Desse modo, eliminar os ciganos afirmando a sua inferioridade racial seria contraditório dentro da mentalidade nazifascista.

7 CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.


Referências bibliográficas

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Douglas Neander Sambati é licenciado em História e Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Santa Catarina. Atualmente desenvolve tese de doutorado sob o título provisório de A Historical-Sociological Analysis on the Romani Nationalist Movements: Foundations, Targets, Challenges and Conflicts, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Histórica da Universidade Carolina em Praga, República Tcheca.

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