O governo Bolsonaro e a Teoria Literária

Northrop Frye desenvolveu um complexo sistema para situar, de acordo com suas características em relação às do leitor comum, os personagens de uma obra. Flávio Aguiar aplicou-o à tragicomédia de erros do Governo Bolsonaro e seus arredores.

Imagem: Reprodução

Por Flávio Aguiar.

No começo dos anos 80 do século passado tive a honra de ser estudante do curso sobre simbolismo literário do professor canadense Northrop Frye, no Victoria College da Universidade de Toronto. Frye foi um dos luminares da Teoria Literária no século XX. Entre outros feitos, desenvolveu um complexo sistema para situar, de acordo com suas características em relação às do leitor comum, os e as personagens de uma obra. Resumindo muito sua hipótese de trabalho, pode-se dizer que os e as personagens se dispõem em cinco níveis, de baixo para cima: 1. Satírico ou Irônico, quando eles são considerados “inferiores” ao “homem comum”; 2. Imitativo baixo, quando são iguais a este; 3. Imitativo elevado, quando são ainda seres humanos “normais”, mas com características excepcionais, caso, por exemplo, dos protagonistas da tragédia grega; 4. Romanesco, quando os protagonistas são ainda “seres humanos”, mas convivem com forças sobre-humanas ou maravilhosas; 5. Míticos, quando os protagonistas são seres sobre-humanos, operam eles mesmos feitos miraculosos considerados como estando além da capacidades dos comuns dos mortais. Diga-se passagem: para Frye esta categorização não representa uma escala de valores, nem estética nem (e muito menos) ética, seja qual for o ângulo escolhido para situar nela personagens. Uma farsa, por exemplo, pode conter personagens satíricos e míticos; estes podem ser “bons” ou “maus”, ou “bons e maus” ao mesmo tempo, independentemente do nível em que se situem.

Dias atrás pus-me a refletir sobre o que estamos assistindo nesta brutal tragicomédia de erros em que consiste o governo de Jair Messias Bolsonaro e seus arredores, como a Lava Jato, os algoritmos digitais, os kit-gays, mamadeiras de piroca, além de seus antecedentes e funestas consequências que já se fazem sentir e as que ainda estão por vir. Fiquei pensando que tudo isto pode ser visto como um longo, penoso, mas também grotesco e vil desfile de personagens de uma peça em que se misturam farsa, comédia, tragédia, drama, psicodrama, romances de (de)formação, e onde se agitam ambições desmedidas, cupidez, ao lado de mediocridades canhestras e irremediáveis. Pus-me então a analisar seus personagens de acordo com aquelas categorias de Frye. Deu no que deu: o resultado aí está, logo abaixo.

(1) Nível satírico ou irônico, o dos “subumanos”. Aqui se acotovelam vários personagens. Por razões de espaço, só poderei destacar alguns. Uma característica frequente destes personagens é que eles ambicionam aparentar o que não são. Constroem máscaras para si mesmos, e muitas vezes são eles mesmos vítimas delas. O primeiro que aparece, na linha de frente, é o guru da trupe, o “filósofo” Olavo de Carvalho. Mutatis mutandis, ele lembra, data venia, o charlatão da comédia “As nuvens”, de Aristófanes que, como diz o título, vive nelas, nas nuvens. O guru da Virgínia só pode ser considerado “filósofo” se considerarmos “filosofia” as escatologias que reverbera continuamente, com especial fixação nas partes pudendas traseiras do corpo humano, ao lado da terraplanície de suas ideias erradias. Outro que habita esta categoria é o atual ministro da (des)Educação, Abraham “Cacho de Uvas” Weintraub, com sua insana perseguição às universidades e seus chocolatinhos ridículos, além das confusões semânticas, como aquele entre Kafka e Kafta. Aqui reside também o chanceler Ernesto Araujo, motivo de chacota no mundo inteiro, com sua fixação no marxismo cultural, no globalismo esquerdista, na conspiração climática, no “milagre de Ourique”, reduzindo a pó-de-traque o anterior prestígio da instituição que “lidera”, o Itamaraty. Também convive aqui a senadora Soraya Thronicke, que veio à Europa e declarou-se “chocada” diante da imagem do governo Bolsonaro no exterior. Não se pode saber em que nuvem ela habita, mas deve pairar sobre a “terraplana” do guru acima referido. Não é no planeta em que pisamos.

(2) Imitativo baixo. Cruzando referências, esta é uma categoria preferencial para os personagens “realistas”, onde, dentre outros, proliferam muitos que o filósofo francês Henri Bergson colocaria na faixa dos que habitam, com outros, no chamado “baixo cômico”. São personagens ridículos, caracterizados por fixações obsessivas, mas que, sendo engraçados, podem assim mesmo fazer muito mal aos outros. Aqui age, por exemplo, o feitor da economia, Paulo Guedes, com sua monomania em torno da “reforma” da Previdência e pela anulação de direitos até hoje constitucionais. Também navega nesta plaga (ou praga?) o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com seu ar de executivo bem resolvido. Bem resolvido sim, mas a escangalhar nossa natureza. Idem, a “Musa do Veneno”, a ministra Tereza Cristina da Agricultura, e sua paixão pela liberdade de expressão dos agrotóxicos. Nesta frincha estão também os ministros militares e inclusive o general Mourão, o vice-presidente. Esforçam-se por parecer “gente normal”, com um ar “solene” e “racional”, por se apresentarem como uma “orquestra afinada” no meio deste “coro de desafinados” que é o atual governo. Entretanto se apequenam no meio da balbúrdia generalizada, e o ar enfatuado que encenam lhes dá um tom cômico, lembrando o “miles gloriosus”, ou soldado fanfarrão, da comédia homônima de Plauto. Tentam colocar-se como “os guardiões da nação”, mas são embrulhados no mesmo manto de ridículo que cai sobre todos.

(3) Imitativo “elevado”. As razões das aspas que aqui pus logo se tornarão evidentes. É que aqui habitam todos os comparsas e figurantes da “Farsa Jato”, ou “Vaza Jato”, que atende pela alcunha de “Lava Jato”. São muitos e muitas, tendo à frente o atual ministro e ex-juiz Sergio “Triplex” Moro e o procurador Deltan “Power-Point” Dallagnol. Apresentam-se como seres excepcionais, heróis salvadores da pátria enxovalhada pela corrupção. Mas além das torpes labirintites jurídicas que praticam, tudo o que vêm conseguindo expor até momento, além de sua cupidez política e por alguns bilhões cobiçados para um fundo de administração própria, é a sua excepcional mediocridade, ao lado de um provincianismo exacerbado e um extraordinário ofuscamento diante do Eldorado Faraônico do Império do Norte, a cujas teorias e devaneios jurídicos se entregam de modo amplo, geral e irrestrito. Agem e pensam como se fossem protagonistas de um drama moderno; na real, atuam no meio de uma farsa que pode dar em tragédia.

(4) O Romanesco. Aqui reina, impávida, a ministra Damares Alves, com sua goiabeira miraculosa e suas patéticas declarações sobre tudo, do lesbianismo de personagens de desenhos animados aos trajes azuis para meninos e rosas para meninas. Ela se apresenta como uma “mulher comum”, que convive com forças espirituais sobre-humanas. Não preciso me estender. Ela fala por si.

(5) O plano mítico. Este é mais que óbvio. Ocupa-o, sem par, o presidente, que traz o messianismo carimbado no próprio nome. Opera verdadeiros milagres. Por exemplo, consegue curar seus seguidores mais fiéis do mal da visão. Cegos, eles se reúnem em torno dele ou de sua imagem, gritando “mito, mito”, seja lá o que isto queira dizer para eles. Outro milagre: consegue exorcizar a razão de pessoas vítimas dela. Tornam-se devidamente irracionais, atirando-se aos atos mais ferozes contra seus inimigos e permanecem fanatizados pelo líder e incrédulos para com tudo que lhes revele a estupidez do que estão, na verdade, seguindo, professando e praticando. Além disto, ele distribui comendas a granel, para a própria família e demais acólitos, como quem oferece indulgências plenárias nesta e em alguma outra vida. Só os que, mesmo com espírito obtuso e tacanho, conseguem captar em si essa energia messiânica, são capazes de tais proezas. Sobre elas paira, no alto, como um foguinho, o espírito divinal de Steve Bannon, a instruir-lhes a milagrosa linguagem dos algoritmos digitais, que multiplica mensagens como outrora se multiplicavam pães, peixes, e se transformava a água em vinho, ou a derrota em vitória, como em Ourique.

Bom, com algumas pequenas adaptações procurei ser fiel tanto ao espírito de Frye quanto ao de Bergson e também à evocação de Plauto. Uma última observação, para o bem e para o mal: esta farsa trágica a que estamos assistindo não acabará em pizza. Está mais para terminar, como um drama shakespeariano, entre envenenamentos e punhaladas.

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