O Estado contra as mães: relato de um júri de chacina

Todas as retóricas que se construíram em torno da figura do acusado enquanto um policial que atuava na guerra às drogas de maneira firme, ao mesmo tempo em que era um bom pai e cidadão, encobriram, aos poucos, os cerca de oito processos, com mais de vinte mortes.

Foto: Reprodução/Mães de Maio

Por Camila Vedovello.

Oito horas da manhã do dia 30 de outubro de 2018, Débora avisa por mensagem que logo as mães estarão no Fórum Criminal de Brás Cubas. Às nove da manhã, ao chegar ao Fórum, encontro já a postos as Mães Mogianas, as Mães de Maio e as Mães em Luto da Zona Leste, estendendo suas faixas com o rosto de seus filhos e pedidos de justiça estampados. São em sua maioria mulheres, exceto seu Francisco,[1] pai de um rapaz desaparecido nos crimes de maio de 2006. Elas distribuem panfletos, se apoiam e estão ansiosas. Proferem palavras de ordem, mostram umas às outras os rostos de seus filhos nas faixas.

O ser mãe é, nesse momento, um ato político, performático, legitimador da busca de justiça e da possibilidade de garantir que seus filhos sejam passíveis de luto e de dor. Judith Butler relaciona a possibilidade de luto de uma pessoa ao reconhecimento dessa vida.[2] Nesse sentido, reconhecer o filho, estampar seus rostos em camisas e faixas, é enquadrá-los enquanto sujeitos e torná-los vidas enlutadas, e é também politizar suas mortes. Adriana Vianna e Juliana Farias apontam essas práticas enquanto dinâmicas de enfrentamento ao Estado e compartilhamento de afetos e solidariedade entre esses familiares, que se tornam protagonistas de lutas sociais a partir de uma perda irreparável.[3]

Nesse dia as mães estavam juntas pois, às 13 horas, teria início o primeiro julgamento de um ex-policial militar, acusado de uma série de processos – cerca de oito – onde constam mais de vinte mortes em chacinas ocorridas na cidade de Mogi das Cruzes entre os anos de 2013 e 2015. Há indícios de que todos esses massacres foram praticados por um grupo de extermínio, e segundo o Ministério Público de São Paulo, o ex-PM participava dele.

Por volta das 11 horas da manhã, três policiais militares saíram por um dos portões do Fórum, passaram pelas mães e pararam em frente às faixas, observaram e retornaram ao prédio por outro portão de acesso. Uma das mães questionou para as outras a razão de terem feito isso.

Esse primeiro movimento dos PMs foi um prenúncio de como seria o júri, que julgaria a autoria da morte de Matheus, 16 anos, de Felipe, amigo do ex-PM, e de duas tentativas de homicídio. Havia senhas reservadas para os familiares das vítimas, mas as outras mães tiveram que entrar a fila para pegar senha e, assim, assistir ao júri. Por volta do meio dia, os familiares do ex-PM chegaram. Um dos seus irmãos furou a fila das mães, gerando confusão e indignação.

No horário marcado para início do júri, foi informado que as testemunhas de acusação seriam todas ouvidas em sigilo. Assim, as mães teriam que esperar do lado de fora pelo testemunho de seis pessoas. Os advogados de defesa pediram para que os jornalistas se retirassem do local. Uma das testemunhas, ao sair, relatou a um repórter que havia uma série de policiais militares dentro do tribunal do júri e, que, portanto, não entendia como uma testemunha seria protegida dessa forma.

Do lado de fora, as mães, que esperavam no sol, resolveram se sentar em uma mureta e no chão, embaixo de uma cobertura do local. Funcionários do Fórum e PMs presentes, no entanto, se dirigiram a elas dizendo que não poderiam esperar sentadas. As mães resolveram reclamar com a imprensa que fazia a cobertura do evento, sobre o impedimento de se sentarem. Após este momento, os funcionários do Fórum e os policiais militares pararam de questioná-las. Durante o mesmo período de tempo, familiares do ex-PM ficaram dentro do Fórum, na sombra.

Somente por volta das 16h30 houve a liberação para entrar no tribunal. A partir desse momento, as mães, os repórteres e outras pessoas que estavam lá puderam acompanhar as testemunhas de defesa, assim como o andamento do julgamento.

Das quatro testemunhas de defesa, três eram policiais militares. A primeira a dar seu relato foi a esposa do ex-PM que, entre choros e falas sobre seu filho sentir falta do pai, declarava que o acusado era um policial muito combatente. Os três policiais que testemunharam em seguida utilizaram-se de falas que reiteravam a ideia do combate. Falas como era um policial ativonão era um policial vagabundo que gastava gasolina à toa, era um policial prendedor. Seus depoimentos apareceram para qualificar o ex-PM como um bom policial, que seria para essas testemunhas aquele que sai às ruas e prende. Assim, estar engajado nas políticas de encarceramento em massa, serviu como um roteiro que transformou, aos poucos, para o júri, o réu em um herói incompreendido.

Corroborando com esse roteiro desenhado para a defesa, o réu engendrou seu discurso construindo a imagem de um bom pai de família e um sujeito que tinha como maior alvo o combate ao crime de tráfico. Desse modo, a fala da defesa do ex-OM o inseriu na figura do herói, do cidadão de bem, bom pai de família que trava a guerra às drogas.

Todas essas retóricas que se construíram em torno da figura do acusado enquanto um policial que atuava na guerra às drogas de maneira firme, ao mesmo tempo em que era um bom pai e cidadão, encobriram, aos poucos, os cerca de oito processos, com mais de vinte mortes, como sendo de sua autoria. Os assassinatos dos jovens periféricos de Mogi nas chacinas ocorridas ao longo de dois anos foram se empalidecendo quando as cores do policial de bem foram se tornando mais fortes no imaginário do júri.

O promotor, ao tratar do caso, mostrou que os exames balísticos provaram que o réu era o autor dos assassinatos pelos quais estava sendo julgado. Além disso, elencou e ressaltou o nome das vítimas do réu, chegando a ler nome por nome, de todos os processos, tentando trazer à tona a pessoalidade dos mortos.

Ao mesmo tempo em que fez isso, o promotor também trouxe ao debate a participação do ex-PM em grupo de extermínio, mas o fez inserindo os jovens mortos dentro do que conhecemos como sujeição criminal,[4] ou seja, um processo social que acopla o crime aos sujeitos, fazendo com que se tenha uma expectativa negativa em relação a esses indivíduos, como se o crime, ao invés de uma ação, fosse parte da subjetividade das pessoas que em algum momento os cometem.

Essa sujeição criminal dos jovens chacinados entre 2013 e 2015 se deu a partir do momento em que o promotor, ao relatar que o acusado era integrante de um grupo de extermínio, delineou que os ataques desse grupo se davam contra traficantes, usuários e bandidos, criando assim, arquétipos sobre quem seriam os jovens mortos, auxiliando nessa construção do ex-PM enquanto um herói incompreendido.

O réu se declarou inocente, e para contestar as provas, acabou por acusar a Polícia Civil de forjá-las para incriminá-lo, relatando que um policial da Garra havia dito a ele que seria preso para acalmar a sociedade e o governo, que queriam uma resposta rápida. Nenhuma das graves acusações feitas pelo ex-PM foram fundamentadas ou provadas e, apesar de todas as provas contradizerem sua inocência, o apelo ao imaginário bandido bom é bandido morto atualmente aceitável em nossa sociedade, e com a construção de um estereótipo dos jovens durante o julgamento, os assassinatos foram tacitamente aceitos e, na madrugada do dia 31 de outubro, o ex-PMfoi absolvido desse processo.

A mãe de Matheus recebeu de outra mãe ativista a notícia via whatsapp. Todo o processo desse tribunal do júri evidenciou como o aparelho jurídico-estatal se estabeleceu, naquele momento, para tentar minar o ânimo das mães, tentando romper com uma possível correlação de forças que elas tentam estabelecer diante do Estado.

As diversas ações e práticas vivenciadas nesse júri – desde o medo evidenciado de que arrancariam ou colocariam fogo em suas faixas, passando pelas horas debaixo do sol, por uma construção narrativa dentro do júri de que, de alguma forma, seus filhos eram nóiasbandidostraficantes, usuários[5] e que os grupos de extermínio agiam contra esses – demonstrou como o Estado se coloca contra as mães e sua luta, desvelando como funciona a necropolítica[6]dentro do Judiciário, ou seja, como são gerenciadas e estabelecidas políticas do fazer morrer sobre determinadas populações.

O ex-PM ainda é réu em diversos outros processos, cabe sabermos como os próximos julgamentos se darão, tendo em vista que serão realizados já sob a liderança de João Dória no governo de São Paulo e Jair Bolsonaro, na presidência, duas figuras que declararam, respectivamente, que policiais que cometem homicídios tenham os melhores advogados criminalistas e que se acabe com a ilicitude dos homicídios realizados pela polícia. Débora, em uma de suas falas, durante a espera do júri, colocou que a gente precisa discutir a pena de morte no Brasil. É necessário, pensar, como tem se estabelecido essa pena de morte, esse necropoder, através da letalidade policial, de um aparelho jurídico-estatal que se utiliza amplamente da sujeição criminal para determinar aqueles que podem morrer sem que seus assassinos sejam vistos e julgados como tais.

 

[1] Ao longo do dia, mais três homens, que eram ou pais de vítimas ou companheiros de mães de vítimas, chegaram para acompanhar o júri.

[2] BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

[3] VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cad. Pagu, Campinas, n.37, p.79-116, dez. 2011.

[4] MISSE, Michel. Sujeição criminal. In: Lima, Renato S; Ratton, J. L.; Azevedo, Rodrigo G. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p.204-212.

[5] Todas essas palavras foram utilizadas durante o júri, seja pelos advogados de defesa, testemunhas de defesa ou mesmo o promotor.

[6] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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