O Estado: a serviço do mercado ou da democracia?

Por Cândido Grzybowski.*

O golpe do impeachment não só revelou uma conjuntura de grande mudança na correlação de forças políticas no Brasil, mas trouxe com ele um projeto de arquitetura do poder de Estado que restringe seu papel de garantidor de direitos democráticos de cidadania para todas e todos, amplia seu poder repressivo, em nome da “ordem e progresso”, e abre espaço à expansão das forças brutas do mercado. Trata-se de “Estado mínimo” de um ponto de vista da democracia, mas “Estado fortaleza”, beirando ao fascismo, para garantir privilégios de classe da nossa velha oligarquia. O projeto visa uma mudança mais duradoura para que a assimetria do poder em favor das classes abastadas não seja ameaçada novamente. Por isto, o esforço enorme usando todo o arsenal de práticas corruptas que contaminam profundamente a política no Brasil, para fazer o mais rápido possível reformas constitucionais e desconstrução de direitos conquistados.

Tudo está sendo feito em nome de tal projeto. Na conjuntura mais recente, aberta com as delações dos donos da JBS, o núcleo central dos líderes políticos do golpe, a começar por Temer, aparece profundamente emaranhado na trama da corrupção política. Mas não atinge o projeto de Estado das forças que os botaram lá, só seus ocasionais e necessários operadores. Certa confusão se instalou entre as “vozes” públicas, organicamente articuladas com o golpe, especialmente a grande mídia. Como tudo vai se acomodar e o que sairá das entranhas dos que estão por trás do golpe ainda é cedo para vislumbrar.

O que deve preocupar a todas e todos, que vislumbramos a democracia como possibilidade de transformar e de equalizar no espaço público da política a enorme assimetria em nossa estrutura social, é o quanto as mudanças constitucionais e legais em curso tornam difícil e longe uma possível reversão de volta a um virtuoso processo de democratização. Sou dos que pensam que para mudar isto vai ser necessário um esforço de 20 a 30 anos, isto se começarmos agora. O edifício democrático que vínhamos construindo desde os anos 80 do século passado desabou, porque não conseguimos realizar transformações irreversíveis nos fundamentos de nossa economia predatória, extrativista e insustentável, e de nossa sociedade extremamente injusta e desigual, oligárquica, patrimonialista, machista e racista.

O capitalismo mais selvagem voltou a ditar as regras entre nós. Recrudescem conflitos e até chacinas bárbaras no clima de desregulamentação em termos sociais e ambientais que está vigente. As mortes violentas se revelam no aumento assustador das estatísticas de insegurança no campo e nas periferias urbanas. O desemprego e o trabalho precário são uma chaga visível em qualquer lugar. Em nome do extrativismo e agronegócio, a violência no campo volta a ser prática de conquista de terras por grandes proprietários. Limitam-se as demarcações de terras indígenas, negam-se direitos de quilombolas, sem terras e posseiros, redefinem-se áreas protegidas e o desmatamento destrutivo está liberado. Até tropas militares o governo golpista botou nas ruas contra manifestantes, lembrando os piores momentos do passado, que pensávamos estar superado. Como estancar tal derrocada democrática beirando ao fascismo?

O tamanho do desafio que temos pela frente é dado pelas forças ocultas que controlam o poder, como nos lembrou, já há muito tempo, o Fábio Konder Comparato. O sujeito coletivo detentor do poder é o “senhor mercado”. Mas quem é tal senhor? De maneira simples, podemos definir aqui como sendo aqueles 1% de privilegiados porque donos de vultosos capitais, empresas e conglomerados, proprietários de terras e bens, banqueiros e especuladores. Tem seus analistas e ideólogos, estrategistas e gestores fiéis também. É incrível que tal sujeito abstrato, um verdadeiro feitiço que se manifesta em valores monetários milionários e até bilionários, com consumo suntuoso em ilhas fortalezas em nossas cidades, tenha tanto poder de sedução e indução, sem outra motivação que não a sua própria acumulação. Para crescer e acumular todos os meios são possíveis, legítimos ou ilegítimos. Seu poder se mede pela capacidade de fazer se submeter a seus interesses quem está à frente da representação política da sociedade e da gestão do Estado, no Executivo, no Parlamento e no Judiciário. Para o mercado não existe lei, só restrições legais, que podem ser contornadas pela fraude, corrupção e paraísos fiscais. Mas ele, o tal mercado, determina o ritmo da economia, os investimentos, os empregos, o bem-estar da própria nação. Isto é capitalismo e nada mais! Até o sonho do socialismo e, agora, de uma democracia social a ele se renderam.

Que fazer? Resistir, resistir e resistir! Mas só a resistência não basta. Ela impede que o pior aconteça. Precisamos mudar e isto sempre é possível, como mostra a história. Para mudar, porém, não podemos nos restringir ao debate que ocupa todo mundo na atual conjuntura: fora Temer, com impeachment ou renúncia; anulação do pleito de 2014 pelo TSE; eleição indireta x diretas já… e por aí vai. Longe de mim dizer que tudo isto em nada importa. Afirmo e reafirmo que nos engajar no que temos que decidir no presente é incontornável, mas precisamos de uma estratégia de longo prazo. Afinal, o tal projeto em favor do “senhor mercado” está longe de depender do governo Temer. É algo que foi implantado habilmente pela mídia e conta com hegemonia, no sentido que Gramsci empresta a este conceito. Trata-se de um projeto veiculado e aceito de forma ampla como a saída para o Brasil, a solução para o desemprego, o bem-estar de todo mundo. O que precisamos disputar e derrotar é tal projeto de sociedade, Estado, economia e de país. Para isto, precisamos muito mais esforço do que derrotar Temer e seu grupo. Isto até a Globo quer. De novo, acho fundamental botar o Temer para fora, pois isto nos dará ânimo para avançar. O horizonte que precisamos ver está além da onda que rebenta na praia.

Objetivamente, a mudança que precisamos exige esforço em muitas frentes. Organizar trincheiras de resistência com senso de se preparar para o momento oportuno é o primeiro passo. A expertise da educação popular nos pertence e temos tudo que acumulamos com Paulo Freire, a educação popular, as comunidades de base, as resistências em favelas e periferias nas cidades e nos territórios de cidadania no campo contra remoções, o ativismo em movimentos sociais e organizações, no feminismo, contra o racismo, a cultura e mídia alternativa e, hoje, temos o fantástico mundo de possibilidades das redes interativas. Temos todo um veião de pensamento crítico que desvenda nossa intrincada história de conquista de terras, destruição e colonização, de escravismo, coronelismo, machismo, do favor, privilégios e patrimonialismo contra direitos iguais, da persistência até hoje da lei pétrea fundacional do país, expressa na síndrome da casa grande e senzala da sociedade brasileira.

Mas precisamos, ao mesmo tempo, de um projeto ambicioso de repensar o país a fundo, de fazer uma síntese de nossas fortalezas e debilidades, com uma visão que aponte o possível caminho que poderia nos levar a um lugar mais democrático, mas sustentável e justo, do bem viver. Uma terceira frente deve ser a ousadia de disputar corações e mentes no debate público. Como? Não sei. Estamos adiando sempre a tarefa de disputar mídia como referência de contraponto ao que aí está. Temos experiências muito importantes para com elas aprender lições de êxitos e fracassos. O fato é que temos que ser mais ousados. Estrategicamente, se trata de não deixar o ideal da democracia cair no ostracismo, como, aliás, parece a onda dominante no mundo. Voltar a pensar, refundar e praticar o socialismo democrático é um horizonte estratégico que precisamos considerar, de meu ponto de vista. Enquanto isto, “fora Temer”.

Rio de Janeiro, 04/06/17

*Sociólogo, do Ibase.

Imagem: Democracia & Política

Fonte: Ibase.

 

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