O espelho do presente: Rodolfo Walsh e o sombrio dia de justiça

Por André Queiroz.

(para Danilo Carneiro e para todos nós)

Rodolfo Walsh, militante montonero, escritor e periodista, escreveu pequena (grande!) série de contos irlandeses – e num deles, chamado: Un oscuro día de justicia, descreve os horrores do internato em uma escola para rapazes.

Nela, o bedel Gielty dá vazão às suas fantasias de ordem e disciplina – e como não poderia faltar aos que assim procedem, o ritual ordenatório era eivado de perversidade e de fetiches. Gielty era dado a organizar pugilato entre os meninos. Mas não um qualquer pugilato – imprescindível a este era que se transfigurasse em rito de iniciação, e de tal modo isso, que cumpria na promoção dos confrontos que uma das partes estivesse quase que à condição de refém. Sim, isto mesmo, a condição de refém.

Tratava-se de dispor tipos bastante antagônicos em enfrentamento. Modo geral, a um dos lados, era apresentado o tipo mais forte: impávido colosso, ser de pedra, punhos de aço, corpo de atleta, armadura de chumbo, queixo de faca. Do outro lado, o franzino imberbe recém chegado, magro a doer às vistas, candidato a tísica, tímido como quem se recolhe a si, voz de filete, queixo de cristal.

E todos os dias – como os caminhos de Roma – conduziam àquela arena, a mesma na que se celebrava o saldo de sempre. Gielty, entretanto, justificava a empreitada: tratava-se de uma superação. O mais fraco não poderia ser tido como o sacrificado, pelo contrário, o mais fraco deveria ser aquele que ousasse a superação. Deveria dar-se ao emprego do milagre da devoção: arrancar o leite da fava, sacar a glória da tormenta, lançar ao solo as sementes da fome e de ali ser capaz de colher a mágica da multiplicação. Era esta a sua pedagogia. Dizia ser edificante. Sugeria àquela arena o local da transmigração: a alma frágil do corpo minguado tornar-se-ia centauro titã semi deus. Bastava que não recuasse. Bastava que se lançasse a frente em meio ao tropel de estímulos e desafios que a massa de estudantes-expectadores lhe dirigia: vai soca! vai desvia! vai nocauteia!

Dizer o quê de Collins? Rodolfo Walsh nos deixa claro o seu destino: Collins apanhou desde o dia em que entrou no estabelecimento de ensino, desde o dia em que subiu ao ringue. Apanhou, apanhou, apanhou. Olho roxo aqui, entorse de pescoço, costela quebrada, sangramento no nariz fatiado, escoriações na alma exposta ao suplício. Do outro lado, era o Gato o batedor. Por vezes, talvez o Gato se compadecesse de Collins, mas Gato era admoestado pelo bedel Gielty para que não desse sopa, para que saraivasse sopapos, para que fizesse valer a sua função iniciatória, e Gato se enchia de razões, alvitres (vá se saber se de sua época de calouro…), e de encomendas. Dizer o quê de Collins? Talvez que lhe restasse pouco ou nada de saída. Talvez que fosse a morte o que se lhe avizinhava, talvez que fosse o escárnio cotidiano o seu parceiro de solidão.

Certo dia, cansado da sova de sempre, Collins teve ideia magistral. Resolveu recorrer ao exterior. Resolveu destrancar – imaginário – as portas de sua cela e arranjar-se um deus de ocasião que, na certa, lhe traria melhores dias, sorte de reis, ceia benfazeja, e o deus que lhe coube Collins sorteou de suas proximidades familiares, lembrou-se do tio que sempre lhe fora o protótipo do herói, tio Malcolm, sim, sim, tio mas também demiurgo, sim sim, tio mas também redentor, Collins resolveu que escreveria uma carta a ele. Questão a ver era como fazer para que a carta transpusesse os muros do internato, as grades do presente, a cerca da cidade fortaleza na que, ouviu-se dizer, era enfarpada, com vigilância dia e noite, com sentinelas de plantão, com estafetas a fazer o trabalho sujo da delação.

Todavia, fora esperto Collins em sua condição de refém. Tramou subterfúgios, traçou plataformas subterrâneas, acordou pactos à clandestinidade de redes de informação, e a carta escapou ao poder onisciente, e a carta trafegou em meio às mãos sem digitais, e a carta escorregou no limo das atenções – entre o piscar de olhos da sentinela e a troca de guardas. Na certa que o recuo a que se colocara Collins o habilitara a conhecer como ninguém os desvãos os interstícios o soturno dos becos o aroma das coxias.

Tio Malcolm viria! E de há tanto se fez a Collins um dia claro. E desde há tempos se lhe plantou ao rosto um sorriso largo. Depois do açoite seria a bonança. Depois do pesadume seria a placidez de águas nunca revoltas. Collins seria até mesmo capaz de desafiar ao Gato. Collins seria até mesmo capaz de dar a cara a tapas. Collins seria mesmo capaz de oferecer-se à encomenda da próxima surra pedagógica. É que conseguira enxergar um facho de luz para além do gris de todo tempo. Conseguira mirar o halo por meio a greta e era do concreto armado em fundações sólidas o de que se tratava. Um Gato não moveria mais moinhos até a sua devastação. E consigo Collins trazia a certeza que lhe aprumava o mundo: Gielty não tardaria a pagar os maus feitos.

Rodolfo Walsh nos conta as idas e vindas das expectativas de todos para com o dia anunciado da chega do tio Malcolm. Os meninos se debruçavam muito além da realidade para plasmar ao horizonte a envergadura daquele que chegaria. Seria como o seu tamanho, o seu perfil, o sobretudo no que coubesse? Na certa que seria de um arroubo o descer à plataforma depois da viagem de trem até àquela estação, tio Malcolm teria passo largo, teria as maiores mãos do mundo, teria o olhar dos vencedores, teria o grave na voz imperiosa.

Ao conto de Walsh, a chegada de Malcolm custou o dia inteiro da espera, mas aqui – aos que leem o espelho refratário do presente – adianto logo a sua chegada. Ele chegou ao fim do dia, no último comboio. Caminhou resoluto. Piscou os olhos quando viu a linha de meninos divisada ao longe. Sacou o paletó e foi até junto ao muro do internato onde lhe esperava um discreto Gielty. Não lhe fez as honras da chegada, não lhe seria o cicerone de uma farsa, Gielty sabia que Malcolm caminhava até ele, que Malcolm lhe seria avesso aos protocolos da cordialidade. E foi. E foi.

Malcolm soltou-lhe um direto no queixo de pontas. Era de papel o tigre que nele havia, e Gielty foi ao chão. Tentou se levantar, e Malcolm lhe foi outro direto às maçãs do rosto e a tal ponto isto que a derrota de Gielty talvez que fosse definitiva – e nada de gongos e nada de contagem e nada de levantar cambaleante, os joelhos dobrados acentuando o flagrante fracasso, nada que isso.

E era a festa e era a farra e era o espocar de fogos e era a libertação dos meninos e era a libertação da massa na que os meninos se compraziam em júbilo. Malcolm lhes acenava. Collins de soslaio divisava o susto de Gato. Collins era riso largo. Collins era a expressão da porteira aberta os cavalos soltos o latifúndio desfeito os grileiros fugidos o desmonte atestado. E era a massa e era o povo e era Malcolm quem lhes trouxera o molho de chaves a bússola dos novos tempos a recomposição das horas outrora aterradas.

Rodolfo Walsh encerra aí o seu conto? Walsh nos presenteia com a mística da libertação? Walsh nos oferta a senha da ruptura? Qual que isso?! Seria de um desserviço assim o fosse. Seria levar-nos por caminhos incongruentes como quem nos acena – lépido instantâneo – o outro lado do parafuso, a trilha exata e precisa para o quando da encruzilhada. Rodolfo Walsh atiçaria em nós a farsa dos que prometem mundos e fundos desde a reforma do lodo na que chafurdamos? Rodolfo Walsh nos indicaria o costumeiro conforto consolo dos milagres que assentam e acentuam o torpor que paralisa o caminhar dos que resistem e se insurgem para além da resistência? Rodolfo Walsh seria ele capaz de nos oferecer o pão do dia como quem sacia a fome da sublevação?

Nada que isso. Não era um reformista Walsh. Não estava a ver se do parlamento dos infames sairia um coelho à sorte das empreitadas. Não era um frouxo  a escrever cartas de explicação aos banqueiros que vilipendiam as massas todo tempo todos os dias enquanto para povo proferia a oração aos justos. Era de outra monta aquele Rodolfo Walsh montoneiro. Sabia que a luta era luta de vida e morte. Não recuou para dentro da casa infame parlamentária como quem acerta a conta dos ponteiros da eleição finada. Seria o caso cuspir naquele prato de honrarias, Walsh cuspiu e nos sugeriu o cuspe-desprezo-desmonte.

Mas como que isto? Como e onde que Walsh nos acena a esta contenta se era aquele um obscuro dia de justiça?

Ah… a justiça… a justiça… onde que isso? É que o bedel Gielty não estava morto – rei posto nudez de vísceras exposta aos abutres que, como ele, começam o banquete desde os mais frágeis e indefesos. Nada que isto. Malcolm ainda acenava de dentro de sua gordura vitoriosa quando de trás dele ressurge o famigerado Gielty com uma pedra definitiva às mãos. Irá chocá-la contra a nuca de Malcolm até que se fizesse vencido o Malcolm da redenção. Malcolm desaba junto aos gritos da platéia.

E aqui são palavras de Rodolfo Walsh – porque infinitamente melhor do que este que escreve, pode ele dizer por si mesmo o que coube de tudo, o que deveria caber de tudo: as tarefas para então.

“E enquanto Gielty o arrastava na ponta de seus punhos como nos chifres de um touro, o povo aprendeu que estava sozinho, e quando os socos que soavam na tarde abriram uma chaga incurável na memória, o povo aprendeu que estava só e que devia lutar por si mesmo, e depois que as figuras sumiram nos limites do jardim, o povo aprendeu que estava só e que devia lutar por si mesmo e que das próprias entranhas tiraria os meios o silêncio a astúcia e a força…”

Legenda foto de capa: Rodolfo Walsh – escritor argentino.

Fonte: IELA. 

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