O encontro de Helsinque e a fragilidade do governo de Trump

Foto: Kremlin

Por Rita Coitinho, para Desacato.info.

Foi preciso que se passassem alguns dias para que fosse possível tratar do “tema do momento”: o encontro Trump-Putin em Helsinque (Finlândia). Muito já se disse sobre o acontecimento, porém parece-nos que há, dentre tudo o que já foi dito na imprensa internacional e por analistas de várias partes do mundo, um punhado de questões que são fundamentais para que se possa compreender os sentidos desse encontro e seus desdobramentos. É o que tentaremos apontar, embora sinteticamente, para que possa caber no espaço de uma coluna semanal.

Em primeiro lugar cabe destacar – e não somos os primeiros a fazer isso – que o encontro não resultou em absolutamente nada. Isso mesmo. Nada. Nenhum acordo, ou declaração conjunta, sequer um protocolo de intenções relativo, por exemplo, ao tema da redução de arsenal atômico, ou de mísseis, como era esperado, ou algum tipo de tratativa referente ao envolvimento das duas potências na guerra da Síria, ou sobre a anexação da Crimeia pela Rússia, o conflito no Donbass (Ucrânia), a questão energética ou comercial. Nada.

Mas então por que alguém gasta seu tempo escrevendo sobre esse encontro? Porque, como já afirmamos em outras ocasiões, em política certos silêncios são extremamente eloquentes. O bem-educado encontro entre os presidentes das duas maiores potências atômicas do mundo, embora não tenha tido qualquer resultado concreto, aconteceu, e isso, por si só, é fato a ser comentado. Sinalizou para o mundo que, afinal de contas, Donald Trump não pretende apertar seu “grande botão vermelho” em um ato intempestivo. De outro lado evidenciou, também, um Trump politicamente isolado em seu próprio país. O festival de reações agressivas do establishment estadunidense contra o encontro de Helsinque e, especialmente, a intensificação da agitação política em torno da suposta interferência russa a favor de Trump nas eleições presidenciais dos EUA, coloca em dúvida a viabilidade da administração republicana nos próximos anos de mandato. Tudo indica que, sob o comando do setor derrotado nas últimas eleições, a situação política interna dos EUA tende a complicar-se nos próximos meses, não sendo impossível, até, que Trump não termine o mandato.

Todas as apostas da administração Trump estão depositadas na expansão do controle estadunidense sobre o comércio de energia e no protecionismo econômico. É essa sua estratégia para fazer a “América (a deles) grande outra vez” e é o que esperam seus eleitores, desiludidos com a globalização. Isso explica, por exemplo, seu anunciado descomprometimento com os Acordos de Paris para redução de emissão de gases de efeito estufa. A produção estadunidense de gás e petróleo é, como se sabe, baseada no processo de faturamento hidráulico do folhelho, um processo polêmico pelos altos riscos ambientais que envolve. O fato é que essa técnica de produção de gás e petróleo provocou uma verdadeira reviravolta nos Estados Unidos, uma vez que levou à queda do preço dos combustíveis internamente e, ainda, gerou uma nova fonte de empregos e geração de riqueza em regiões que estravam decadentes economicamente, como a Pensilvânia e Dakota do Norte. Dentro da tática traçada pela administração do republicano, os EUA devem avançar sobre o mercado energético e é, por isso, necessário ampliar os efeitos das sanções sobre o Irã e, também, sobre a Rússia.

Assim é que o tom contra o Irã subiu nos últimos meses, a partir da retirada dos EUA do acordo sobre energia nuclear, até chegarmos na situação atual, de ameaças de Trump ao Irã pelo Twitter e recrudescimento das sanções econômicas de modo a impedir que o Irã possa vender petróleo à Europa. Pouco antes da reunião com Putin em Helsinque, Trump proferiu palavras duras contra a Alemanha, a quem acusa de ser “dependente da Rússia” – pois a Alemanha é uma das maiores compradoras do gás russo, que vem por gasoduto (o Nord Stream, com 1.224km). Para que os EUA possam ampliar suas vendas de gás, é preciso que a Europa – e especialmente a Alemanha – seja forçada a tornar-se uma grande compradora. Isso passa, inclusive, por impedir a conclusão do Nord Stream II (que passa pelo mar Báltico), que ampliará a capacidade de exportação de gás pela russa Gazprom.

Bom, e por que a deferência com a Rússia, já que é ela, junto ao Irã, o principal empecilho para que o os EUA possam ampliar suas vendas de gás e petróleo? A primeira razão, ao que parece, é que Trump deseja seguir com sua política de isolamento do Irã sem a intromissão russa e, para isso, seria preciso alcançar algum tipo de diálogo, ao menos para que as relações Rússia-EUA retornem ao patamar anterior a 2014 (ano da ascensão do governo xenófobo na Ucrânia). Avesso ao multilateralismo, Trump aposta na agenda bilateral, e pretende com isso estabelecer as novas bases das relações exteriores dos EUA. Do lado russo, ao contrário, o encontro com Trump serve para demonstrar que a Rússia aposta no multilateralismo. Ao encontrar-se com Trump, Putin enviou um recado ao mundo: o caminho são as negociações, a diplomacia, o multilateralismo, e a Rússia acredita tanto nisso que reúne-se até com o governo que refuta a diplomacia, sabota o multilateralismo e abandona compromissos já assumidos.

A ideia que alguns analistas ventilam é que, para os EUA, seria central uma aproximação com a Rússia visando o enfraquecimento de seus vínculos com a China, esta sim a verdadeira ameaça, em termos econômicos, ao poder estadunidense. Contudo o encontro de Helsinque demonstrou o que no fundo todos já sabiam: os EUA não têm nada a oferecer à Rússia para que abra mão da aliança estratégica com a China. De outro lado, embora o Irã, o outro “problema imediato” da administração Trump não seja exatamente parte dessa “aliança estratégica”, é o maior fornecedor atual de petróleo para a potência asiática e não é do seu interesse, nem da Rússia, que seja cercado a ponto de ter de reduzir drasticamente sua produção de petróleo. Os iranianos contam com isso e não hesitam em anunciar que resistirão aos embargos anunciados pelos EUA – inclusive ameaçando fechar o estreito de Ormuz, uma zona estratégica considerada “internacional” pela convenção da ONU sobre Direito do Mar (1982). Desejará Trump entrar num confronto de tamanha envergadura? O encontro de Helsinque demonstra que ele hesita, do contrário, não faria sentido a agenda com o presidente russo.

Como afirmamos no início, a falta de resultados do encontro nos diz mais do que poderia alguma declaração genérica assinada pelos dois presidentes. Mostra um Trump sem projeto de política exterior definido, embora responda, de certa maneira, aos interesses de alguns setores econômicos e a despeito de suas declarações intempestivas. Revela um ambiente interno, nos EUA, profundamente hostil à Rússia. Ao mesmo tempo, o clima de hostilidade à Rússia vem sendo instrumentalizado para desestabilizar o governo Trump, com o qual não estão satisfeitos alguns dos poderosos investidores e mega-corporações que apostavam suas fichas na eleição de alguém mais experimentado na promoção de seus interesses globais. A estratégia de “cerco à Rússia”, que vem dominando o debate da política externa estadunidense, e seus efeitos na política do atual governo Trump, serão abordados no próximo artigo.

Rita CoitinhoRita Coitinho é socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.

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