O discurso irresponsável da mídia tradicional do Brasil sobre a Venezuela

Solidariedade com a VenezuelaPor Elissandro dos Santos Santana, de Porto Seguro, para Desacato.info.

Infelizmente, a grande mídia brasileira tradicional, fiel adepta do modelo neoliberal, fortemente defensora da subjugação das nações latino-americanas ao poder estadunidense, ao apresentar informações sobre a Venezuela, sempre o faz a partir do olhar viciado em apoio ao poder opressor nortista para a desconstrução e desmantelamento venezuelano e de outras nações do Continente Latino-americano, como Cuba ou Bolívia.

Os meios de comunicação conservadores no Brasil, ao noticiarem qualquer fato sobre a Venezuela, sempre procuraram imprimir o apoio incondicional à direita elitista venezuelana, desconstruindo a semiótica governamental de Hugo Chávez e, agora, a de Maduro. Em qualquer reportagem ou matéria sobre a política daquele país, constroem uma semântica discursiva invertida em torno do que seria um governo voltado para as classes menos favorecidas para sentidos como governo comunista ditatorial bolivariano.

Ao associar o léxico bolivariano à ditadura, a mídia tradicional brasileira se mostra irresponsável e maldosa intelectualmente, imputando às massas do Brasil um conhecimento informativo raso e ralo acerca da importância que o pensamento bolivariano pode representar para a descolonização do pensamento brasileiro em torno das forças do poderio do capital explorador dos Estados Unidos e da Europa Ocidental em pleno século XXI.

A mídia tradicional brasileira, irresponsavelmente, brinca com o vocábulo “comunista”, sem aprofundar a discussão em torno do termo, fazendo com que os brasileiros com pouca leitura acerca de modelos como o Socialismo, só consigam conceber o comunismo em perspectivas e vertentes negativas de análise.

O projeto da mídia de desinformação de grande parte da sociedade brasileira deu tão certo que não é raro escutar nas ruas ou ler nas mídias sociais protestos de manifestantes em apoio a governos de direita como o de Temer, alinhados com os dogmas do capitalismo e com a subjugação da nação brasileira aos ideais e políticas estadunidenses, por exemplo, com frases do tipo: “Vai para Cuba” ou “O Brasil não vai se tornar uma Venezuela!”.

Feitas essas explanações, para que o leitor entenda como a mídia opera a construção de nossos sentidos sobre a Venezuela, fazendo com que não cheguemos ao cerne do pensamento revolucionário bolivariano, um modelo que desafia a hegemonia do capitalismo opressor dos EUA e suas nações sequazes amigas, podemos recorrer a teóricos que versam sobre essa questão, para que, assim, não fiquemos apenas nos conhecimentos superficiais que o jornalismo conservador busca construir no Brasil.

Para a compreensão das bases bolivarianas e o que elas podem nos ensinar, pode-se recorrer ao capítulo “Geopolítica de la Venezuela Bolivariana”, do professor e pesquisador Doutor Juan Agulló, publicado no livro América Andina: integração regional, segurança e outros olhares, livro organizado pelos pesquisadores Oliveira, Nogueira e Melo, pois, no referido capítulo, de forma contundente, o professor Juan apresenta-nos o que ocorre na Venezuela, que, segundo ele, ainda segue sendo um grande desconhecido e, por isso, há muito que se dizer. Ademais, pontua que a revolução bolivariana promoveu uma política exterior anti-imperialista no marco de uma América Latina em mudança.

O Doutor Juan Agulló começa a discussão a partir de um apanhado histórico para situar o leitor acerca do então Presidente Hugo Chávez, mencionando o seguinte: Hugo Chávez é uma estrela midiática global. Desde que chegou à presidência da Venezuela em 1999 se transformou em uma notícia recorrente nos meios de comunicação. Uma situação inusitada para um país que até o início do século costumavam dar-lhe pouca atenção na mídia internacional, apesar de ser o sétimo maior do mundo, com reservas provadas de petróleo, nono produtor e quarto maior fornecedor para os Estados Unidos.

O professor Juan Agulló continua a discussão apresentando algo que julgo deveras importante para a compreensão do que acontece hoje na Venezuela, mencionando que as aparências, em todo caso, não devem enganar: que, atualmente, a imprensa mundial fale da Venezuela e de seu Presidente muito mais que no passado não quer dizer que os conhecimentos globais em torno a dito país sejam maiores que os de antes.

Como consta no capítulo do professor Juan, aqui em análise, um estudo de fundos bibliográficos, realizado em seis das bibliotecas latino-americanistas mais importantes do mundo evidenciam as seguintes: (Biblioteca Hispânica de Madrid; Bibliothèque Pierre Monbeig do IHEAL de Paris; University of Cambridge Library; Latin American Network Information Center dos EEUU; Biblioteca Central da UNAM, México e Biblioteca Virtual do Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales, Buenos Aires) alcançou os seguintes resultados em comparação: Argentina, 14,944; Cuba, 13,591; México, 34,960 y Venezuela, 8,422.

O que isso quer dizer? Que pouco se sabe mesmo sobre a Venezuela.

Segundo o Professor Juan Agulló, pior, sete de cada dez venezolanistas estrangeiros trabalham nos Estados Unidos e a maior parte dos acadêmicos venezuelanos com projeção internacional tem algum tipo de relação institucional com o país citado. A consequência lógica de tudo isso é que os únicos programas acadêmicos do mundo dedicados ao estudo da Venezuela estão nos Estados Unidos e a seção de Estudos Venezuelanos da LASA possui sua sede na Pensilvânia. Tudo isso implica que – apesar do antiamericanismo que caracteriza ao chavismo – a maior parte do escasso conhecimento científico internacional sobre a Venezuela siga sendo produzido – ou circule, pelo menos – pelos Estados Unidos. Um paradoxo típico de muitos países da periferia que, no caso da Venezuela, se explica por uma estrutura acadêmica (docente e investigadora) e editorial (bibliográfica e hemerográfica) especialmente frágil em termos comparativos.

A grande mídia brasileira, distante da realidade venezuelana, imprime os valores que chegam ao Brasil acerca da Venezuela a partir das noções e pressupostos atravessados pelos Estados Unidos, e mesmo quando algum jornalista conservador brasileiro vai à Venezuela para a apuração dos fatos e elaboração das notícias, faz sempre a partir dos valores conservadores dos grupos aos quais serve no Brasil, impedindo que outras verdades cheguem até nós.

Um ponto importante que o professor Juan coloca e que, por isso mesmo, pode contribuir para que entendamos por que tantos estereótipos equivocados são projetados pela mídia tradicional no Brasil para a sociedade em geral é a questão de que há, de fato, outros países latino-americanos – como México, Brasil, Chile, Argentina e inclusive, Cuba – que, após alcançarem um grau maior de desenvolvimento acadêmico, estão em melhores condições para construir (e, inclusive, distribuir) conhecimento próprio em torno das próprias realidades. A Venezuela, no entanto, se complica: daí as dependências teóricas e, como consequência das mesmas, as lacunas e estereótipos circulantes.

As informações que nos chegam aqui no Brasil, por meio de mídias tradicionais como a Globo, por exemplo, nos alcançam sem que tenhamos a dimensão histórica e política dos fatos. Os adeptos da direita conservadora, aqui, claro, interpretarão as informações da mídia tradicional ao sabor dos próprios sonhos neoliberais e só enxergarão uma Venezuela, mas o brasileiro mais crítico, se informará a partir de fontes diversas para entender que o governo socialista venezuelano, diferente de governos anteriores, desenvolveu políticas mais voltadas para os pobres do país, gerando algumas pequenas mudanças na pirâmide social venezuelana e, por isso, desencadeando a aversão das classes mais favorecidas economicamente que sempre estiveram no centro das decisões de poder e política do país.  Ocorre que devido ao histórico de injustiça na distribuição de renda na Venezuela e, pese a isso, a pouca diversificação nas matrizes de produção do país, com a dependência do petróleo como eixo central de produção e geração de divisas e com as crises econômicas mundiais, o governo atual venezuelano não conseguiu manter o ritmo na equidade social. Diante disso, pode-se afirmar que o país vive sim uma grave crise econômica, mas é preciso que a mídia brasileira deixe de ser irresponsável e comece a pontuar as questões históricas nas quais se construiu a Venezuela, mostrando que a culpa é mais antiga e pertence aos grupos de controle do país que nunca se conformaram com o projeto socialista de distribuição de renda e, consequentemente, de implantação de um projeto de justiça social.

Conforme o professor Juan Agulló, o obstáculo histórico mais evidente para assentar a visibilidade política do país reside em uma fragilidade institucional diretamente relacionada com uma enorme segmentação social (depois de uma década de chavismo, segue havendo 28% de pobreza). Não há, de fato, uma Venezuela senão duas. Não se pode dizer, entretanto, que um dos dois países viva a custa do outro: em vez disso, os recursos não são atribuídos à equidade e eficiência devidas.

Para a compreensão da crise econômica atual da Venezuela, a triste e irresponsável mídia tradicional brasileira deveria ser mais honesta intelectualmente e mostrar ao povo as origens do problema venezuelano atual. No cerne da crise, está, com certeza, a questão petrolífera daquele país, dependente das oscilações econômicas mundiais. Nesse sentido, a mídia precisa apresentar à sociedade brasileira em que período o petróleo se consubstanciou como matriz única de produção venezuelana e quais grupos implantaram esse projeto de dependência.

Segundo o pesquisador Juan Agulló, o monocultivo promovido entre 1960 e 1976 havia incrementado dramaticamente os termos da dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos. Por isso, um ato aparentemente soberanista como a nacionalização teve, em realidade, efeitos muito limitados: acabou por propiciar uma progressiva perda de controle do país sobre seus próprios recursos que, praticamente, fizeram desaparecer qualquer aparência de autonomia no âmbito internacional.

Enfim, os problemas atuais são frutos de políticas construídas em torno da dependência e essa conjuntura não é filha do socialismo de Hugo Chávez ou de Maduro, mas dos grupos de poder da direita que sempre se beneficiaram dos meios de produção da Venezuela. Durante anos, as elites conservadoras venezuelanas se mantiveram no poder e agora querem retornar, aproveitando-se das crises pelas quais passa o país, crises essas que, como já mencionei, encontram explicações bem mais no passado que no presente.

A mídia conservadora retrógrada do Brasil, sempre a serviço dos grupos de poder, jamais traria à tona os matizes geradores do problema, ao contrário, serve de máquina de promoção dos grupos de poder da Venezuela, quando fomenta o ódio ao governo socialista de Maduro, como também fez com o de Hugo Chávez.

A mídia tradicional brasileira é assim, sempre promove o opressor, ficando contra os oprimidos do sistema. Nas ditaduras brasileiras, sempre esteve do lado de quem? Do opressor. No golpe parlamentar de 2016 no Brasil esteve e está ao lado de quem? Dos partidos conservadores golpistas em apoio ao governo usurpador de Temer, que, de forma catedrática, é contra a justiça social e os avanços que as minorias alcançaram no Brasil nos últimos treze anos.

Por tudo o que fora mencionado até aqui, só resta afirmar que a mídia tradicional brasileira se enquadra no que Umberto Eco nos traz no livro “Número zero”: as notícias deveriam fazer os jornais e não os jornais as notícias.

Referencial para a construção do texto:

AGULLÓ, J. Geopolítica de la Venezuela Bolivariana. In OLIVEIRA, RP., NOGUEIRA, SG., e MELO, FR., orgs. América Andina: integração regional, segurança e outros olhares [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2012. pp. 97-136. ISBN 978-85-7879-185-8. Available from SciELO Books.

Número zero, livro de Umberto Eco.

 

Imagem: Diário Liberdade

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