O dia em que a Justiça argentina tentou prender Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio

Por Nora Veiras. 

“Não fiquemos tristes, aflitos, calados ou quietos. A mobilização dos povos é o que liberta. As Madres seguiremos nesta posição irredutível, para que não continuem avançando sobre nós. Já fizeram demais em sete meses. Macri, basta.” Eram pouco mais de seis da tarde [de quinta-feira, 4/8] quando Hebe de Bonafini falou pela segunda vez no dia a uma multidão que a abraçava. Nas primeiras horas da manhã, o advogado da Associação Mães da Praça de Maio havia apresentado em documento diante do juiz Marcelo Martínez de Giorgi, antecipando que Hebe não se apresentaria à segunda convocação para depor, relacionada à organização Sonhos Compartilhados. Um aparato policial, inédito para executar a ordem de detenção de uma mulher de 87 anos, deslocou-se então para a Praça de Maio, na mesma hora em que, desde 1999, as Madres saem para sua ronda histórica. Não puderam cumprir a missão e a notícia começou a se difundir pelo mundo, ao ritmo de centenas de pessoas que confluíam à praça e em seguida, em caminhada, de volta à casa das Madres, a duas quadras do Congresso.

“Nos cercaram de policiais, atravessaram um carro na frente da van das Madres, mas saímos por cima. Demos um drible”, contou Hebe, um pouco depois, ao jornalista Víctor Hugo Morales.

“Fizeram uma jogada de Maradona”, respondeu ele.

“Sim, e o povo completou para o gol”, concluiu Hebe.

“Estupor”, “desgosto”, “barbaridade” eram as palavras repetidas por todos. Chegaram as mulheres que lutam nas ruas há quarenta anos e o ânimo mudou. “Com Hebe não se mexe”, “Madres de la Plaza / el pueblo las abraza”, começou o coro. As Madres saudavam: “sempre igual, na luta, vivas”.

Um símbolo

As pessoas foram chegando, espontaneamente. “Estava no trabalho, fui alertado por um whatsapp e estou aqui. Isto é um ensaio. Estão testando até onde podem chegar, o nível de reação que temos”, dizia Fabian, 47 anos, assalariado. Alguns passos adiante, Andrés Eraso havia comparecido com sua câmera para registrar um destes dias que não poderia esquecer. “Onde eu possa levar meu corpinho estou, trato de acompanhar. Esta gente não sabe o que fazer deste país. Em sete meses, geraram uma trapalhada fenomenal, que não sabem como consertar”.

“Amanhã, não se esqueçam de ler Clarín e La Nación [jornais argentinos que apoiam o governo Macri] para ver o que ocorreu”, ironizava um fotógrafo, surpreendido por uma multidão que foi se formando por quadras. “Pela Avenida de Maio, quando as Madres voltavam da Praça, foram saudadas por chuva de papeis picados”, contava. “É doloroso, mas estar juntos é a forma de recarregar as baterias”, sintetizava outra senhora.

As Madres chegaram, precedidas por uma guarda improvisada de motoqueiros. Desceram da van e abriram caminho como puderam, até chegar à cozinha de sua casa. O lugar em que se encontram diariamente. “Alguns creem que isso é o Kremlin. E a primeira coisa que dizemos todos os dias é que viemos comer. Pedimos alguma coisa e depois morremos de rir, porque não lembramos o que pediu cada uma”, contaria Hebe mais tarde, desdramatizando o dia em que pela primeira vez quase a encarceraram em “democracia”.

Dirigentes de movimentos sociais e apoiadores do kirchnerismo foram chegando. Na última hora, depois de falar por telefone, chegou Máximo Kirchner, [filho dos ex-presidentes Nestor e Cristiina]. “Resgato a dignidade de Hebe e das Madres. Sempre estão dispostas a envolver-se com o próprio corpo. Foi assim na ditadura; em 2001, quando a polícia atacou-as com cavalos e também agora”, disse o deputado.

“A única luta que se perde é aquela a que se renuncia. Este ataque não é apenas contra Hebe. Começou com Milagro Sala [líder popular e cooperativista, hoje presa]. Seguiu com a perseguição midiática e judicial a Cristina Kirchner. Hoje é Hebe; amanhã, todos os militantes populares”, disse o advogado Oscar Parrilli. Andrés Larroque, [dirigente de La Cámpora, movimento kirchnerista], destacou que “o povo esteve à altura das circunstâncias e inundou as ruas”. O deputado Martín Sabatella destacou: “Hebe é um monumento à dignidade. Se a tocam, e a Cristina, nos tocam a todos”. Daniel Catalano, secretário da associação dos servidores públicos alertou a ministra da Segurança, Patricia Bullrich “para que saiba que há um povo decidido a resistir, por mais que ela queira cumprir as ordens de Washington”. O economista Axel Kicillof destacou “a vergonha internacional que a tentativa de deter Hebe provoca. A notícia hoje é que os lutadores populares são perseguidos, enquanto se procura libertar os repressores. Este projeto só pode ser imposto com a repressão dos que lutam. O ativista Luis d’Elia, principal referência da Federação da Terra, Moradia e Habitat, previu que “o Judiciário e a mídia não poderão frear a luta popular”. Jorge Ferraresi, prefeito do distrito de Avellaneda, adverteu: “vamos combater. As Madres não tiveram medo de Videla [o ditador Jorge Videla (1976-1981)]. Vão temer Macri?”

Hebe fechou o ato improvisado na porta da casa das Madres, confessando sua felicidade pela “mobilização do povo”. Todos juntos cantaram o hino argentino. E as Madres voltaram à intimidade de sua cozinha.

Artigo publicado originalmente no jornal argentino Página/12. Tradução: Antonio Martins, no siteOutras Palavras

Foto: Reprodução/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi

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