O desafio da reportagem é recuperar o olhar do espanto, diz Eliane Brum

Por Fabio Pontes.

“Bons repórteres são bons escutadores da realidade. O mais difícil é justamente aprender a escutar com todos os sentidos”, a frase é da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum ao falar sobre o jornalismo e a importância da escuta na reportagem durante eventos que participou, no último dia 6, em comemoração aos quatro anos de fundação da agência de jornalismo independente Amazônia Real, em Manaus.

A jornalista proferiu a palestra “Escuta e Transgressão: a reportagem como documento da história em movimento”, no mini-auditório da Escola Superior de Artes e Turismo (Esat), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Também lançou a segunda edição do livro “O Olho da Rua”, na Banca do Largo São Sebastião, no entorno do Teatro Amazonas.

“Eu tenho muito medo de jornalistas que acreditam pairar acima da realidade, capaz de uma total isenção porque essa ilusão da imparcialidade total faz com que não tome as precauções necessárias, não tome as precauções sobre si mesmo para que possa chegar o mais perto da verdade, já que não existe uma verdade só e nunca conseguimos alcançar totalmente as verdades múltiplas”, afirmou Eliane.

Para ela, o papel do jornalista no exercício da função não é o de “apaziguar o leitor, mas o de incomodá-lo”. “O desafio da reportagem é recuperar o olhar do espanto”, disse.

Eliane Brum em palestra no miniauditório da ESAT da UEA (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

No livro “O Olho da Rua”, reeditado e ampliado pela editora Arquipélago, Eliane publica dez grandes reportagens feitas na primeira década do século 21. Para cada uma delas há um texto que revela a história dentro da história, ao narrar os bastidores a partir dos dilemas, das descobertas e também das dores a que se lança uma repórter disposta a se interrogar sobre sua própria jornada.

Mediada pela jornalista Elaíze Farias, cofundadora da Amazônia Real, a palestra “Escuta e Transgressão: a reportagem como documento da história em movimento” de Eliane Brum contou com a presença da coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes (PPGLA), professora Luciane Páscoa, e de um público de cerca de 60 pessoas, entre coordenadores de cursos de jornalismo, jornalistas, estudantes e convidados da agência.

Com quase 30 anos de profissão, a gaúcha Eliane Brum foi repórter do jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre (RS), e repórter especial da revista “Época”, em São Paulo. Atualmente assina uma coluna quinzenal no “El País”, que é publicada em português e em espanhol.

Escrever sobre a Amazônia e desde a Amazônia, tirando da invisibilidade as suas populações e diversidade. Assim definiu a jornalista Eliane Brum sobre o trabalho desenvolvido pela agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real. “A Amazônia Real desenvolve um trabalho fascinante de tirar as Amazônias do invisível”, disse.

Na palestra, Eliane Brum falou sobre a tendência de parte da imprensa de buscar no sensacionalismo policial, que busca sempre qualificar os personagens num lugar-comum, de fortalecer a “desumanização” de ambas as partes: vítimas e criminosos.

“As pessoas não são um substantivo: monstro, bandidos, vítima, etc. As pessoas são pessoas e o jornalismo precisa combater a desumanização para não falsificar a vida. Qualquer desumanização, especialmente as mais difíceis.”

Na análise de Eliane Brum, desfazer essas formas de jornalismo só será possível com o aperfeiçoamento da capacidade de se escutar as fontes – e o escutar no sentido mais amplo da palavra.

 “Sem o instrumento da escuta, sem despir-se de si, não seria possível escutar um pedófilo de criança, por exemplo. E a gente precisa escutar, não para absolver ou condenar porque jornalista não é juiz, embora alguns pensem que são”, disse.

A jornalista, documentarista e escritora Eliane Brum (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Eliane Brum diz que sem essa escuta feita com todos os sentidos o jornalista não terá a capacidade de produzir uma boa reportagem. Sem aprender a escutar, diz ela, o jornalista pode ter um dia ou três meses para fazer uma reportagem, que não fará diferença. Pode atravessar o mundo literalmente, mas simbolicamente não saiu do lugar, porque vai apenas levar seus conceitos e preconceitos para passear de avião.

“Há uma dificuldade tremenda em escutar. Todo mundo quer falar, mas ninguém quer escutar.”

Além de jornalista e escritora, Eliane Brum codirigiu quatro documentários, entre eles, “Laerte-se” (Netflix, 2017). Desde o final dos anos 1990, ela faz reportagens em diferentes regiões da Amazônia. Há 13 anos, acompanha populações ribeirinhas na região da bacia do Xingu, no Pará. Em 2011, passou a acompanhar pessoas e comunidades atingidas pela hidrelétrica de Belo Monte.

Eliane Brum acompanhou de perto o drama de centenas de famílias ribeirinhas que foram expulsas de suas casas por causa da inundação da barragem da usina. A essas pessoas ela deu o nome de “refugiados dentro de seu próprio país”.

“Eles foram reduzidos do território do próprio corpo. Tudo o que diz respeito à memória deles virou água, virou liquido.”

Os dramas vividos por essas pessoas estão entre as histórias incluídas no documentário independente “Eu +1: uma jornada de saúde mental na Amazônia”, dirigido por Eliane Brum, e financiado pela internet como parte do Projeto Clínica de Cuidado/Refugiados de Belo Monte.

Palestra com Eliane Brum no miniauditório ESAT/UEA (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Palestra com Eliane Brum no miniauditório da Esat (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Fonte: Amazônia Real.

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