“O Corpo”, conto de Clarice Lispector adaptado para o cinema

Por Dri Calderaro

A adaptação de “O corpo”, de Clarice Lispector, torna claro quais são os significados do conto e mostra o ser humano em seu estado puro

O corpo, José Antônio Garcia
Cena do filme “O corpo”, dirigido por José Antônio Garcia

O conto clariceano “O corpo” foi adaptado para o cinema por José Antônio Garcia. Essa adaptação não deixou lacunas nem tampouco criou demasiadamente sobre a obra a ponto de deturpar o sentido dela. Com dosagem acertada, o filme vem tornar mais claros significados que possam ter passados desapercebidos durante a leitura da obra.

A atmosfera sexual em “O corpo”: conto e filme

Conto e filme são, do início ao fim, enredados por uma atmosfera sexual. Para além do forte caráter sexual, ao qual nos vemos propensos desde o título, outros sentimentos (ou sensações) nos são sugeridos no decorrer da história, todos relacionados ao tema “corpo” – que nos remete mais facilmente ao que é profano -, estabelecendo um contraste com o espírito (o sagrado).

“O corpo” do título não teria relação, portanto, somente com o corpo assassinado de Xavier. O corpo de todas as personagens, ao longo de toda a trama, mostra-se ora antro de um pecado, ora antro de outro, quando não de vários ao mesmo tempo. São facilmente detectáveis ao menos seis dos sete pecados capitais: luxúria, gula, preguiça, vaidade, ira, inveja. Talvez a avareza possa estar subentendida na posse que Carmem e Beatriz sentem por Xavier, a ponto de matá-lo por não quererem dividi-lo com mais uma mulher.

Prosseguindo sob uma visão mais delimitadora, sexo, morte e mal transpassam toda a obra, estando sugeridos em imagens, cenários, falas das personagens ou, no caso do conto, falas do narrador. Os alimentos são todos “úmidos” e “bons”, o sexo entre Beatriz e Carmem é “triste”, o ato de assassinar Xavier deixa as mulheres “exaustas”, “suadas”, o amante é enterrado em solo “úmido”, “fértil”. Todas as referências parecem se entrelaçar, gravitando em torno de um foco, o mal. Mal que demonstra ser imanente a todos os homens e que, na obra, precisou apenas ser despertado em Beatriz (a maternal, preguiçosa) por Carmem (a inteligente, fria, bonita).

Por qual motivo o mal prevaleceu em “O corpo”?

Praticamente apresentado como um bem, na figura de Carmem, o mal enreda e ganha a obra. A Carmem assassina e fria sobrepõe-se à Beatriz maternal e de sentimentos calorosos. Não foi difícil tal dominação. Beatriz apenas despertou para o ato que deveria cometer enfim.

Todo ser humano é, em seu cerne, mau. O que há é a luta para sermos bons e podermos nos enquadrar nas normas da sociedade. Como em “O corpo” as personagens viviam, desde sempre, de acordo apenas com os seus instintos (cometendo por isso diversos dos “pecados” condenados pela igreja e pela sociedade), não houve relutância no momento de praticar o crime. As personagens, em hora alguma, pensam nas consequências sociais de seus atos. Elas procuram somente a satisfação presente do corpo. O assassinato acontece, pois, também instintivamente: decorre da necessidade momentânea de se eliminar Xavier.

Sem julgamento do crime, finaliza-se a trama, já sem grandes entraves para os atos de suas personagens desde o início. Acabamos de lê-la e/ou de assisti-la com certa sensação de náusea (tão tipicamente clariceana), sensação de que algo foi vivido na sua intensidade absoluta, e que, por fim, passou (como um vômito) – já que a obra não deixa nada que é sentido sem realização, sendo quase que somente instinto. O que testemunhamos na história é o ser humano – em estado puro.

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