O Coalhar de Daft Punk. Por Zaza.

Ilustração: Zaza

Por Zaza, para Desacato.info.

Muitos críticos descartam severamente a ideia de “envelhecer mal” como análise construtiva, varrendo como ahistórico reconhecer a evolução da linguagem na arte. Enxergam como dever do consumidor se pôr no ambiente que gerou aquele pequeno geist suspenso no tempo.

Depois de 23 anos e só 4 álbuns o esperado fim do Daft Punk finalmente se realizou num evento vulcânico no dia 22, depois de longos anos de discrição pública e artística. Apesar de reservado, as razões da separação do duo são imagináveis. A banda que exaltava a qualidade contracultural do house em músicas como Revolution 909 foi absorvida pela indústria ao ponto de dedicar seu álbum visual Interstella 5555 (mais conhecido no Brasil pela participação na programação de videoclipes da Rede Band) à crítica da mercantilização da arte, numa saga sobre alienígenas músicos que são abduzidos para vender seus produtos na Terra. O álbum que o acompanhava, Discovery, também recita os temas da descoberta e noção infantil, tentando incorporar a experiência de se escutar música sem capacidade analítica. A música como um produto alienígena.

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O resultado é a sonoridade quase satírica de faixas como High Life, talvez um dos mais requintados trabalhos do duo, em sua simplicidade. Extremamente reducionista (uma das habilidades marcantes do Daft era fazer melodias curtas e repetitivas progredirem com a ajuda dos sons coadjuvantes, vide Technologic, Around The World), ela se eleva às suas características mais nostálgicas, futuristas e hedonistas se utilizando de amostras de pop oitentista altamente deformadas, formando um vóide inescapável de sacarose, viciada no próprio refrão interminável disposto sem economia como é na maioria das músicas comerciais. O ano era 2001. Normalmente datado como data de nascimento do primeiro meme de internet, o catalisador All Your Base Are Belong To Us, firmando o fundamento da produção internética na reutilização, referência e nostalgia.

20 anos depois, Discovery envelheceu como visionário. Pode se tornar até difícil para um público descontextualizado encarar o seu conceito desconstrucionista na era do 100 Gecs e do hedono-aceleracionismo musical de TikTok que faz da maravilha infante-alienígena-futurista do Daft quase obsoleta frente à música que abraçou o que eles observavam como uma imaginação distante e criativa. Superamos o futurismo dos Crescendolls já quando em meados dos anos 2010 a internet se aventurava pela evocação retrofuturista hauntológica do future funk, suas samples açucaradas de outros tempos, atmosferas oníricas, festivas, urbanas, tecnofetichistas. A ambição composicional e sentimental de High Life é quase indissociável de Fun Tonight, clássico do cânone vaporwaveano de MACROSS 82-99, hino de outros tempos de internet. Ambas as peças exibem até mesmo uma autoconsciência similar quanto ao próprio aceleracionismo, porém enquanto Daft Punk brincava com o impossível, MACROSS 82-99 era o possível e o presente, em uma contemplação cínica e celebratória do consumismo que inspirava o outrora satírico vaporwave.

Hoje o gênero já se encontra morto e substituído pelo pessimismo digital de projetos como Sewerslvt e Daft Punk se despede vendo a obsoletização do que um dia foi seu absurdo infantil. Sentirei saudades dos meus robozinhos.

 

Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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