O caso das prisões do reitor da UFSC e de Carlos Arthur Nuzman levanta o debate sobre o interesse na cobertura de prisões

Por Maura Martins.

A morte do reitor da UFSC na semana passada foi mais um episódio a escancarar nas nossas caras o impacto do jornalismo em afetar a “vida real”. Notícias, obviamente, não são apenas notícias: são também janelas que vão determinar qual ângulo da realidade chegará até nós. E os efeitos de uma janela meio mal aberta para o mundo são sentidos na pele dos envolvidos – está aí a morte do reitor, aos nossos olhos, para mostrar o quanto uma vida inteira pode ser reduzida (e trucidada) em uma manchete.

O debate sobre os equívocos na cobertura da denúncia envolvendo o reitor Luiz Carlos Cancellier tem sido profícuo. Em resumo, as notícias se regozijaram em torno da prisão do reitor em torno de um escândalo de corrupção, mas esqueceram de esclarecer (ou pelo menos não fizeram com a ênfase necessária) que Cancellier era investigado não por desvio de verbas na UFSC, mas pela suspeita de interferir na apuração sobre os desvios. Um crime não minimiza o outro, é claro. Mas é notório que qualquer suspeita acerca do reitor foi abraçada por uma espécie de sanha punitiva que acomete os veículos de comunicação do Brasil.

Quando pensamos na cobertura em televisão, há ainda o agravante do uso da imagem, entendido como documento irrevogável de que algo efetivamente aconteceu. Assim, não basta sabermos que um acusado tenha sido preso (o reitor da UFSC, por exemplo, não foi filmado na ocasião de sua prisão), é preciso que haja imagens do indivíduo em questão passando a humilhação da morte midiática. Vejamos, por exemplo, que as notícias sobre a prisão de Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, em que as câmeras buscam desesperadamente o momento da condenação – preferencialmente, portando algemas.

Não se nega aqui o interesse jornalístico em todas essas histórias, é claro. No entanto, há um excesso que se manifesta quando os veículos jornalísticos tomam para si esse papel de fazer justiça.

A força dessa imagem é inegável. Não por acaso vários presos escondem as mãos frente às câmeras, ou seus advogados negociam para que, na ocasião da prisão, as algemas não sejam usadas. Ciente disso, na ocasião do encarceramento e do “enxame” de repórteres que se formou em torno do acontecimento, Nuzman pareceu tentar ativar sua melhor performance.

A câmera, certamente, quer o flagra, a captura daquele momento único no desespero – como o chilique de Garotinho ao ser transferido para o presídio de Bangu – e, em contrapartida, Nuzman oferece a calma, meio como se não estivesse ali. Nas imagens registradas deste momento, ele aparece andando em meio aos policiais federais, com as mãos cruzadas em frente ao corpo (estaria ele disfarçando as algemas?), aparentando tranquilidade – quase como em um protesto ao circo que se monta em torno de sua prisão.

Alguém poderia dizer, não sem alguma razão, que essa cólera coletiva vem ao encontro de uma sensação compartilhada por todos de injustiça e de necessidade de uma correção dos caminhos do Brasil, algo que se fortalece pelos incontáveis escândalos de corrupção que assombram a esfera política. De fato, há aí algum argumento, mas lembremos que a necessidade de ver a punição dos condenados remonta aos sistemas penais que vigoraram até o século XIX, quando a ideia da prisão começa a ser construída. Ou seja, até então, o encarceramento não era pensado como uma forma de punição ao réu: era preciso que todos, em praça pública, vissem seu corpo sofrendo, ser dilacerado, trucidado, e que se regozijassem com o suplício. Em suma, o prazer em ver o outro ser punido não é recente nem restrito ao cenário brasileiro de tantos escândalos, como poderíamos imaginar.

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Não somos mais tão primitivos, acreditamos, mas ainda necessitamos de ter alguma forma de compensação pelas mazelas que nos cercam e pelas injustiças que nos acometem. A cada notícia de um Luiz Carlos Cancellier, ou de um Carlos Arthur Nuzman, há um “bem feito” que ecoa nas profundezas de um imaginário coletivo. Se for alguém muito rico, como um Eike Batista – que, curiosamente, conseguiu ter um certo controle da cobertura midiática da sua punição -, maior a satisfação coletiva. Ainda que estejamos a uma boa distância do século XIX, o espetáculo do horror continua vivo e pulsante, especialmente nos meios televisivos.

Não se nega aqui o interesse jornalístico em todas essas histórias, é claro, nem que toda essa sensação de insatisfação com os rumos políticos do país está sim fundamentada em décadas (mesmo séculos) de práticas corruptas e criminosas, operadas longe das luzes. No entanto, há certamente um excesso que se manifesta quando os veículos jornalísticos tomam para si esse papel de fazer justiça – expondo, sem nenhum critério, a vida de alguém suspeito (e mesmo condenado) de algum crime. Se a morte do reitor da UFSC servir para alguma coisa, que seja para nos alertar que, se as mídias cometeram erros na cobertura, foi com o aval de todos nós, a audiência.

 

Fonte: A Escotilha.

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