O Brasil é plurinacional

Por Elaine Tavares.

Há um grande debate inaugurado na América Latina desde o final dos anos 80, que é o da discussão do conceito de plurinacionalidade, e que vem sendo travado pelas comunidades indígenas de países como a Bolívia, o Equador, a Colômbia, o Chile. Em dois deles (Equador e Bolívia) já se expressou até mesmo nas novas Constituições, garantindo o direito dos povos originários a organizar suas vidas do jeito que melhor lhes convém, sem as imposições de culturas alienígenas, recuperando elementos ancestrais de sua cosmovisão e até a sua autonomia jurídica. Mas, no Brasil, esse tema aparentemente não significa nada. No que diz respeito aos povos autóctones, o que se fala é que aqui as etnias originárias foram em grande parte dizimadas e que o que resta desta gente não é suficiente para pensar um tema como esse. Pois eu arriscaria dizer que esta é uma falsa argumentação. A plurinacionalidade é um tema que, no Brasil, tem muito para se debater. A própria Constituição de 1988, chamada de “cidadã”, inclui elementos que podem desembocar na proposta de um Estado Plurinacional. Basta que as gentes organizadas dêem consequência ao processo de luta que segue em curso.

A luta indígena por um espaço de poder-ser

É certo que a resistência indígena neste espaço geográfico que os europeus em algum momento chamaram de América Latina – o que foi incorporado pela gente local – não é coisa de agora. Desde que perceberam que os brancos barbudos não eram os deuses anunciados nas lendas, milhares de originários lutaram para retomar suas vidas, mas foram sistematicamente vencidos. Ainda assim, estão na lembrança as grandes investidas de Guaicaipuru, Tupac Amaru, Tupac Katari, Sepé Tiaraju e outros tantos heróis autóctones. Durante estes mais de 500 anos de dominação, em todas as partes de Abya Yala (o nome mais antigo do mundo então conhecido pelos povos que aqui viviam), as gentes originárias lutaram e resistiram. Logo, as mobilizações que hoje assomam em todo o território não são novas e muito menos exclusivas do tempo atual.

Mas, para efeitos desta discussão sobre o estado plurinacional, a presença maciça e visível dos indígenas nessa “nova onda de movimentos autóctones” pode-se dizer que tem suas origens recentes no ano de 1990, quando os povos indígenas do Equador decidiram ocupar igrejas e outras instituições governamentais no que ficou conhecido como “primeiro grande levantamento nacional” da era pós-crise dos anos 80 naquele país. O grito pelo reconhecimento das nacionalidades, território e participação política nasce justamente do esgotamento das políticas econômicas que haviam baseado sua estratégia no modelo agro-exportador, sendo o indígena a mão-de-obra quase escrava nas famosas haciendas. Também é importante observar que esse movimento não brota do chão, ele é fruto da crescente organização das nacionalidades, que vinha sendo gestada sistematicamente desde os anos 60.

Pouco mais de três anos depois do levantamento no Equador, das entranhas do México profundo assomou outra movimentação. Um grupo armado, reivindicando o nome e o sonho de Emiliano Zapata, se insurge em Chiapas, esquecido reduto indígena conhecido apenas por sua “insuperável” pobreza. Naquele primeiro de janeiro de 1994, homens e mulheres autóctones, com as caras cobertas por palicates (espécie de lenços) ou pasamontañas (gorros que cobrem o rosto todo), diziam sua palavra armada: “Ya basta! Nunca más el mundo sin nosotros”. Era mais um elemento da insurgência originária que hoje dá uma nova conformação à América Latina.

Os movimentos do Equador e do sul do México abrem as comportas para uma série de lutas que adormeciam nos anos 90, quando as idéias dominantes tentavam impor a ideológica ideia de que havia chegado o fim das grandes narrativas. Os doze dias de combate empreendidos pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional e a subseqüente negociação que levou ao que ficou configurado como “paz armada”, mostraram a todos os povos indígenas deste continente que o modelo capitalista de organização da vida imposto pelos dominadores não precisava ser o único possível. Então, das profundezas das tradições mais secretas e sagradas dos povos antigos, re-começaram a vicejar desejos, esperanças e novas formas de organizar a vida. A América Latina dava passagem para Abya Yala, a terra do esplendor.

Esse nome dado pelos Kunas ao mundo por eles conhecido antes da chegada dos invasores europeus em 1492 começou a ser falado nas imensidões da grande pátria. E os povos autóctones se puseram de pé. Recuperar suas vidas, sua cultura, suas tradições e reinventar seu modo de organizar a vida passaram a ser não mais um sonho perdido na memória ancestral. Era possível aqui e agora. Não como retorno a um passado cristalizado ou a tradições ultrapassadas, mas como possibilidade de recuperar dialeticamente o jeito único, autóctone, de se viver em Abya Yala, na forma abyayálica de ser, o que na conceituação dos povos indígenas significa redefinir o modelo de desenvolvimento, usando elementos como solidariedade, reciprocidade, cooperação, equilíbrio. O sumac kawsay, o sumac kamaña, o bem viver.

Esses são conceitos que não encontram compreensão na intelectualidade de esquerda latino-americana, tal como expressa Gonzalo Guzmán, dirigente da organização ECUARUNARI, do Equador, nascida em 1972, num despertar da nação kichua. “A proposta do Socialismo do Século XXI, no que diz respeito ao projeto de desenvolvimento, não nos contempla. Temos nossa própria proposta e vamos disputá-la”. É que os indígenas têm bem claro que, ao longo destes 500 anos, mesmo a esquerda e os socialistas sempre estiveram respaldando, de alguma forma, o modelo de desenvolvimento de matriz eurocêntrica, moderna. Mesmo agora, quando surgem as discussões de um novo jeito de ser do socialismo no século XXI, não há incorporação do pensamento indígena. Por isso, os povos autóctones – principalmente os do Equador e Bolívia – insistem em apresentar seu modelo de vida.  E assim tem sido a articulação que hoje já se expressa em quase todo o território da antiga “terra nova”. Realizadas quatro grandes Conferências dos Povos de Abya Yala, as comunidades originárias definem estratégias, realizam alianças, reinventam territórios, cunham conceitos e avançam no sentido de ver respeitado seu modo de vida política, econômica, cultural e artística.

O ano de 2000 viu os Aymara, da Bolívia, levantarem bandeiras e fazerem luta conta a privatização da água e, depois, em 2003, iniciarem o processo que culminaria com a derrocada de Sánchez de Lozada e a ascensão de Evo Morales ao cargo de presidente do país. Um presidente da etnia aymara, comprometido com a vida de seu povo. Um homem que ousou chamar uma Assembleia Constituinte, na qual o conceito de estado plurinacional foi instituído, dando vida nova às nacionalidades originárias. Hoje, na Bolívia, os indígenas têm direitos, constituíram eles mesmos esses direitos, seja como deputados constituintes ou como povo em luta, nas ruas. Em que pese todas as críticas ao governo de Evo, esta foi uma conquista das gentes indígenas que ainda precisará de muito tempo para se consolidar, visto que o racismo é algo muito potente na Bolívia. Exemplo disso foi a revolta da “meia-lua”, região tipicamente branca e latifundiária, que chegou a falar em separatismo. Racismo e interesses econômicos fazem um casamento explosivo no país.

Ainda no Equador, foram as comunidades autóctones as protagonistas da ascensão e queda de Lucio Gutierrez na presidência do país, em 2005. As gentes votaram nele para que conduzisse o país a uma nova ordem. Ele as traiu e foi derrubado sem dó. Mais adiante, as nacionalidades apoiaram a eleição de Rafael Correa, que, se não é indígena pelo menos dizia respeitá-los, e, igualmente chamou uma nova Constituinte, na qual o estatuto do estado plurinacional foi conquistado. E ali também foram os indígenas os que se constituíram sujeitos e construíram as novas leis. Hoje, amparados nesse conceito de plurinacionalidade, eles lutam pela preservação dos recursos naturais e pelo direito de se autodeterminarem, travando batalhas contra o governo que eles mesmos elegeram. Porque, por enquanto, estes povos ainda não constituíram um projeto global de nação que possa se apresentar como uma proposta de poder.

Em outros países como a Colômbia e o Peru, governados por presidentes sem compromisso popular, a luta pela ideia do estado plurinacional tem sido intensa, embora sem resultados concretos porque os movimentos ainda não lograram uma organização mais articulada em nível nacional. Também em Honduras, El Salvador, Paraguai e Chile os povos autóctones estão travando grandes e significativas batalhas. E é exatamente isso que torna os dias de hoje um tempo único, porque, pela primeira vez, dezenas de nacionalidades estão em luta, pela mesma coisa, ao mesmo tempo. E, não bastasse isso, não estão em luta sozinhos em seus países, mas numa articulação continental. Até porque as grandes lutas travadas pelas nacionalidades têm sido fundamentalmente contra as indefectíveis transnacionais, responsáveis pela ocupação, no mais das vezes ilegais, das terras autóctones, para implantação de grandes empreendimentos destruidores da natureza, tais como a plantação de pinus ou a construção de grandes barragens.

Ou seja, é uma luta contra o capital.

Em todos os cantos deste continente imenso, que se estende desde o sul da Argentina até a ponta do Alaska, as gentes autóctones querem ser chamadas pelos seus nomes – rejeitando o “genérico” termo índios. Querem seu direito à cultura, à participação política, ao território, à autonomia, à autodeterminação. Como Tupac Amaru, Tupac Katari, Guaicaipuru, Cautlemoc, Sepé Tiaraju, Vaimaca, esse povo todo levanta a cabeça e repete no mesmo tom dos zapatistas de Chiapas: “Ya basta! Nunca más el mundo sin nosotros”. A nós, cabe conhecê-los.

Esta luta gigantesca e articulada dos povos pela idéia de “poder-ser”, recuperando sua cultura, sua cosmovisão e seu território, também se expressa no Brasil. O que ocorre é que, por ter uma dimensão continental, o país vê diluída essas manifestações, que acabam aparecendo na mídia comercial como simples “problemas isolados”, falhas na matrix, ou patologias sociais. Analisando os principais jornais de cada estado brasileiro, em uma checagem diária, o que se vê sobre a questão indígena não passa de notícia pontual: problemas relacionados à saúde, ações da Funai, casos de violência do estado contra os indígenas, ou de jagunços por questões de terra. Tudo é muito fragmentado e não há qualquer contextualização, como se as nacionalidades estivessem “normalmente” integradas à vida nacional. Não há reportagens sobre a questão indígena e, mesmo na chamada semana do índio, que ocorre próxima ao dia 19 de abril, tudo o que se vê são as mesmas velhas cantilenas de mostra de problemas sem uma discussão mais profunda. O índio no Brasil parece ser coisa exótica apenas.

Mas, se olharmos com cuidado a região da Amazônia, do Mato Grosso, da Bahia e até de Santa Catarina, pode-se observar que as comunidades originárias estão na mesma luta dos demais povos da América hispânica, articuladas com todas as nacionalidades da grande Abya Yala, buscando as mesmas coisas: território, autodeterminação e recuperação da cultura. Mas, se assim é, por que então a ideia de estado plurinacional não aparece por aqui?

O Estado-Plurinacional

A história do continente é marcada pela violência da invasão europeia, que se expressou na exploração predadora e no colonialismo. Durante mais de 300 anos as comunidades originárias foram dizimadas, escravizadas e submetidas à opressão. Quando iniciaram as guerras de independência, fruto das ideias liberais que varriam o mundo, os chamados criollos (espanhóis nascidos na América) foram a força hegemônica. Apesar de muitas vezes utilizarem instrumentalmente os desejos de liberdade dos povos originários – e, em alguns casos até terem sua ajuda – ao final do processo, com a derrota política de Bolívar, as propostas de integração continental, de fim da escravidão e de respeito aos povos originários se perderam. Assim,  apesar da vitória da independência, os povos autóctones ficaram a reboque das repúblicas criollas nascentes – marcadamente dominadas por uma oligarquia rural – e seguiram mergulhados na submissão, uma vez que essas oligarquias não tinham qualquer pretensão de incluí-los na vida das novas nações.  Não bastasse isso, os generais vencedores esquadrinharam o território, demarcando fronteiras artificiais, sem levar em conta as nacionalidades que por centenas de anos ali viviam, tal como aconteceu com a nação Mapuche, Aymara e a Guarani. Na região onde hoje é o Uruguai, mesmo tendo sido fundamentais na conquista da independência, lutando lado a lado com Artigas, os povos Charrua, Tapes e Minuano foram  chamados para uma armadilha pelo então presidente Fructuoso Rivera, e acabaram massacrados pelas armas do exército. Os chamados “índios” eram vistos como seres de segunda categoria e a melhor saída encontrada, quando não lograram a dizimação, foi a tutela. Trezentos anos depois da conquista eles ainda eram considerados incapazes de gerir a própria vida.

No Brasil, além de não ter acontecido qualquer ruptura verdadeiramente radical no processo de separação de Portugal, a proposta para os originários variou entre destruição, segregação nas chamadas “reservas” ou integração, dentro do projeto de construção de uma única nacionalidade, na qual todos poderiam ser chamados de “brasileiros”. Ainda hoje, na concepção de muitas das entidades que trabalham com os povos originários, se expressa a idéia de que o Brasil é muito grande e as mais de 200 nacionalidades que aqui vivem têm realidades sociais e históricas muito diferenciadas. Assim, não colocam na sua pauta de luta a proposta de um estado plurinacional, aceitando a ideia de uma nacionalidade única, a brasileira. “São Pataxó, mas são brasileiros”, diz Saulo Feitosa, do Conselho Indigenista Missionário, CIMI. Segundo ele, a Constituição brasileira de 1988 conseguiu avançar no que diz respeito ao reconhecimento das diversas culturas que aqui fazem morada, embora, na época, tenha sido levantada a perspectiva do estado plurinacional. “Hoje, no Brasil, não há, junto às comunidades, a perspectiva de um estado independente. Elas conquistaram a autonomia, mas o estado os protege”.

Essa afirmação certamente não aprofunda o que seja a idéia de estado plurinacional que hoje caminha por Abya Yala. Nenhuma nacionalidade propõe a separação do estado-nação onde está fincada, muito menos a segregação da nacionalidade dita “nacional”.  A proposta é garantir uma vida política ativa dentro desses estados, apontando para a necessidade da criação de normas democráticas que dêem concretude à autodeterminação. Na Constituição equatoriana, por exemplo, em seu artigo primeiro, isso aparece bem claro: “O Equador é um estado social de direito, soberano, unitário, independente, democrático, pluricultural e multiético”. Ou seja, as nacionalidades adquirem autonomia, mas seguem configurando um espaço geográfico único, tal como reafirma o artigo 83, do capítulo que trata dos povos indígenas e dos negros: “os povos indígenas, que se autodefinem como nacionalidades de raízes ancestrais, e os povos negros ou afroequatorianos formam parte do Estado equatoriano, único e indivisível”. Também a Bolívia, na sua nova Constituição, promulgada em outubro de 2008 , propõe no seu artigo primeiro: “A Bolívia se constitui um Estado Unitário Social de Direito, Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomia. A Bolívia se funda  na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, dentro do processo integrador do país”.

Conforme estudos da equatoriana Ileana Almeida[1][1],  o conceito de estado plurinacional aparece ainda de forma muito maleável na América Latina e por isso é também susceptível de mal entendidos. Ela explica que, para os originários, o estado plurinacional não significa em absoluto a assunção da idéia separatista, e sim a possibilidade de, dentro do estado já constituído, alcançar o autogoverno democrático, ou seja, viver com suas próprias regras, garantindo diversas formas e graus de autonomia. E, nesse acaso, a autonomia compreendida não como marginalidade e abandono (como se vê na maioria dos países), mas como orientadora da livre expressão da identidade dos povos. Nesse contexto, a noção de território é de fundamental importância porque, para as nacionalidades originárias, a terra não é só um espaço físico, onde eles vivem, dormem, comem e amam. A terra faz parte da cosmovisão, é morada dos deuses, está intrinsecamente ligada à vida mesma. Daí que a posse real do espaço físico define também essa relação. Ter o domínio da terra é poder governar, de maneira livre, coletiva e comunitária, o que na terra tem.

Por isso, não basta ser como é no Brasil e em outros países, onde os povos têm a terra em usufruto. Ela segue pertencendo à união, é governada por quem não tem qualquer conhecimento da cosmovisão que rege os povos, daí os frequentes desalojos por empresas transnacionais, empresários ou fazendeiros que, em nome do “progresso nacional”, invadem terras e exploram as riquezas. Os chamados “nacionais” sempre se colocam contra os indígenas em momentos como esses, acusando-os de barrarem o desenvolvimento. O caso da demarcação da área Raposa Terra do Sol, em Roraima, que abriga várias nacionalidades do tronco Caribe, é um exemplo concreto. Durante o processo de demarcação, sempre transpassado pelos interesses das gentes poderosas interessadas na riqueza das terras, o tema foi colocado como um obstáculo ao crescimento do país. “Para que tanta terra para essa gente primitiva”, eram as argumentações esdrúxulas que se ouviam nos meios de comunicação. A área da Raposa tem 1.743.089 hectares e está repleta de riquezas minerais e biomedicinais. Mas, os povos que ali vivem não compartilham da visão de que elas devem ser esgotadas. A cosmovisão dos povos amazônicos está centrada na floresta, na água. Ali vivem seus deuses, as forças vitais, e a idéia de “desenvolvimento” dessas nacionalidades em nada se assemelha ao desenvolvimento capitalista predador.

Então, se a proposta é minimamente respeitar a Constituição brasileira de 1988, por que não cumpri-la, como diz o artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Seria talvez por causa do que diz o parágrafo 6, o qual, apesar de asseverar que as terras são inalienáveis, completa: “ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”. Ou seja, se a União quiser, pode fazer uso da terra dos originários a seu bel prazer. É certo que a Constituição estipula a necessidade de diálogo com os povos envolvidos, mas isso não significa, em absoluto, que eles sejam realmente ouvidos. Basta observar as manifestações que são feitas em Brasília, sem qualquer resultado prático, como se pode ver no caso da usina Belo Monte que segue sendo construída apesar de todo o rechaço por parte dos povos indígenas e dos ribeirinhos. Na prática, a opinião dos indígenas não vale nada.

O que se observa, na realidade cotidiana, é que, no mais das vezes, a mentalidade colonizada, branca e racista, crê que as gentes originárias não têm capacidade para governar seu próprio espaço e que as terras nas mãos delas serão logo depredadas, vendidas ou trocadas por cachaça e badulaques – como se sob a posse dos brancos isso não acontecesse. É o mesmo olhar superior dos invasores, que omite os séculos de vivência harmoniosa com a natureza, tempo em que as pessoas modificavam, sim, a paisagem, mas sempre dentro de limites muito demarcados de respeito e cuidado. Mesmo nas culturas que lograram constituir impérios, a natureza nunca foi vista como mercadoria ou espaço de simples exploração. Os conceitos de Pachamama, Yvy Rupã, Wallmapu, e outros que estão colados às mais diversas nacionalidades, são todos conceitos que definem uma unidade inseparável entre a terra e os que vivem nela. Então, quem estaria mais apto para cuidar do espaço geográfico? Os originários ou a cultura capitalista que tudo destrói como bem mostra a quase irreversível degradação ambiental provocada por essa forma de organizar a vida?

As nacionalidades que lutam pelo estado plurinacional não negam a nação, embora entendam que as nações que existem hoje na América Latina definem sua existência como uma comunidade histórica, dentro do desenvolvimento capitalista, o qual buscam destruir. Já as nacionalidades são anteriores a esta construção de inspiração europeia, fruto do colonialismo.  Por isso o conceito de estado plurinacional aparece como perigoso ao sistema. Porque ao abrir-se à idéia de existência de nacionalidades dentro da nação, acaba também garantindo poder a esses povos, permite que participem ativamente da vida da nação, o que fatalmente os transformará num ponto de tensão junto ao poder constituído. Isso se constitui um problema para o estado capitalista, e não foi à toa que o debate constitucional equatoriano e boliviano foi ferrenhamente disputado.

Assim, levando em consideração as contradições que permanecem tensionadas, por enquanto, nação e nacionalidades aparecem como coisas inseparáveis, o que faz com que a maioria dos movimentos envolvendo os povos ancestrais busque também mudanças profundas na vida da nação constituída. Esse é um debate que os intelectuais de direita sequer consideram, e os de esquerda, em maioria, ainda não lograram compreender, o que faz com que o assunto permaneça praticamente apenas dentro dos movimentos indígenas. Romper com o preconceito e abrir-se a novos (velhos) paradigmas é fundamental para que a esquerda latino-americana possa partilhar destas demandas e incorporá-las aos seus programas e estudos. Observar esse território com olhos mais latino-americanos e menos europeus, pode ser um começo singelo, tal como apontou, nos anos 30 do século passado, o intelectual peruano José Carlos Mariátegui.

A realidade brasileira

O Brasil tem hoje 250 nacionalidades diferentes, com realidades históricas e sociais igualmente diversas. Afirma o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que 60 delas sequer fizeram contato e outras tantas estão bastante distantes do mundo branco. Por conta dessa diversidade, muitos acreditam ser quase uma bobagem falar em estado plurinacional por aqui. Mas, longe disso se constituir em um obstáculo, deveria ser visto mais como um elemento de impulsão. Se estes povos lograram viver até hoje longe da cultura invasora, o que não teriam de histórias para ensinar sobre como viver no mundo?  E aqui que fique bem claro, não se trata de professar a fé ingênua de que as culturas originárias devam permanecer puras e distantes dos olhos cobiçosos dos brancos. A ideia do estado plurinacional justamente trabalha com a proposta de que as comunidades, nos seus mais diversos graus de organização, têm todas as condições de decidir sobre seu destino e constituir suas maneiras próprias de viver e organizar a vida sem a necessidade de serem tutelados.

Paulino Montejo, que atua no movimento Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, reconhece que entre as nacionalidades originárias que vivem no Brasil o termo “estado plurinacional” não aparece nos debates, embora a Constituição defina de forma muito clara o caráter multiétnico do país, reconhecendo o direito à organização social dos povos. “É um ponto de partida para a compreensão de que somos multiétnicos e multiculturais”.  Paulino está convicto de que o texto constitucional acaba de vez com a visão integracionista que imperou no país por séculos, mas concorda que o aparato estatal ainda não incorporou esse conceito. “A gente dos órgãos estatais ainda acreditam que os índios são menores de idade, precisando ser tutelados”.

Mas se a palavra “estado plurinacional” não aparece na discussão das nacionalidades originárias que vivem no território hoje chamado de Brasil, isso não significa que não haja luta para garantir a autodeterminação. Há uma articulação para que o Congresso Nacional – que engavetou um substitutivo que aprofunda os direitos indígenas – possa tirar do limbo essa proposta e discuti-la com as gentes. “Foi produzido um documento, com novas propostas, para um novo estatuto dos povos indígenas e isso já foi encaminhado à Câmara. Agora, estamos lutando por uma Comissão Especial que encaminhe o debate e a aprovação”. Paulino entende que a partilha de informações com as nacionalidades de outros países, que já avançaram um pouco mais no debate da plurinacionalidade, tem de alguma forma trazido esse tema para dentro da discussão no Brasil, e o processo tende a se aprofundar.

De qualquer forma, as nacionalidades originárias do Brasil sabem que não será possível importar modelos ou seguir exemplos de povos como os do Equador ou Bolívia. Existem especificidades que exigem propostas criativas e diferentes. O que talvez precise avançar é o reforço da ideia de que o Brasil também é multiétnico e pluricultural. Já os passos que serão dados e os progressos nessa direção dependerão da correlação de forças que se expressa na sociedade brasileira, marcada pelo racismo. Como bem lembra Paulino Montejo, da ABIPI, os povos originários no Brasil estão ainda muito imbricados na luta pela terra, contra a usurpação de seu território, e sofrem a completa falta de estrutura e infinitas limitações materiais, além de terem de enfrentar a dificuldade de se articular num país continental. “Mas isso não significa que não esteja sendo travada uma luta intensa pela autodeterminação”.

Os negros e os quilombolas

Dentro da lógica do estado plurinacional, pelo menos no Brasil, se expressa uma complexidade, talvez a mais significativa, que precisa ser mais discutida: a do povo negro. Com uma história de sequestro e escravidão, essa multidão – mais de 25 milhões – foi arrancada à força do chão natal, nas mais variadas regiões do continente africano. Seus descendentes, tal e qual os povos originários, ao longo destes mais de 500 anos de escravidão, foram amalgamando na memória a herança de sua cosmovisão originária. Mais concretamente podemos falar dos quilombos, que se formaram nos primórdios da escravidão como uma das mais importantes lutas anticoloniais. Eram espaços de resistência negra, lugar no qual os escravos construíram histórias de liberdade e autodeterminação, podendo cultuar seus deuses e praticar suas formas de organizar a vida. Atualmente existem mais de duas mil comunidades quilombolas, em 24 Estados da nação. Mas, por ter sido uma sistemática vítima do racismo da sociedade brasileira, esta cultura sempre tendeu a sobreviver como resistência, muitas vezes perdendo parte de sua herança ancestral.

A questão das comunidades quilombolas começou a ser definida legalmente já na Constituição Federal de 1988, por conta da mobilização do movimento negro. Assim diz o Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.” Esse foi um direito que acabou se concretizando, mas, na verdade, não avança muito no que diz respeito a sua autonomia, coisa que é absolutamente uma característica dessas comunidades desde os tempos imemoriais. A luta pela autonomia e por uma organização livre ainda está se fazendo muito lentamente, sem amparo na lei e sem respaldo político. No geral, se reconhece o direito das famílias à terra, mas não se discute ou se aceita muito bem a proposta de uma auto-organização em outras bases, que respeite a cultura tradicional baseada no coletivismo, numa justiça e prática religiosa próprias, e com uma organização baseada na eleição direta de seus dirigentes.

Vanda Gomes Pinedo, do Movimento Negro Unificado, lembra que na década de 90 do século passado, o militante argentino Juan Pinedo trouxe para o Brasil esse debate da ideia de nacionalidade, na qual questões como território e etnia estão visceralmente imbricadas. Mas, em nível nacional isso acabou causando vários conflitos. “É que naquela década vivíamos a explosão das ONGs, financiadas com dinheiro europeu ou estadunidense, e esse debate foi abafado. As propostas das ONGs eram outras e não tinham como ponto central a autonomia do povo negro”. Foi neste contexto que alguns movimentos mais radicais iniciaram, em 1992, a discussão da construção de um Projeto Político do Povo Negro para o Brasil, com a compreensão de que o território não é só uma coisa material, é também cultura. “Mas, ainda assim, esse é um tema difícil para nós, porque com a escravidão o negro perdeu muito da língua materna, dos costumes e isso acaba dificultando a discussão. Os povos indígenas, de alguma forma, conseguiram manter partes dos seus territórios ou podem lutar par recuperá-los, mas nós, os negros, tivemos nossas nacionalidades pulverizadas. Precisaríamos primeiro reconstituir essa territorialidade para então pensar melhor nossa posição aqui”.

Na verdade, o que Vanda anuncia é a necessidade de se começar a pensar o tema do negro – e também da mestiçagem – como um dos nós centrais da identidade brasileira, porque, afinal, a inserção do negro no Brasil rompeu com as barreiras do quilombo. Com a abolição, milhões de homens e mulheres negros foram também ocupando as cidades e forjando uma nova conformação identitária. O censo de 2010 mostrou que, hoje, mais da metade da população brasileira se diz parda (mestiça) ou negra, o que torna esta a etnia preponderante no Brasil, logo, devendo assumir a sua posição de indicadora de caminhos. Na lógica do capitalismo dependente que toma conta do país, o lugar do negro, apesar de ser maioria, ainda é o da marginalidade, da pobreza, da exclusão da vida digna. Pensar-se como “nacionalidade” poderia fazer com que houvesse tensão suficiente para fazer avançar o debate sobre seu papel na sociedade brasileira e sua condição de, autonomamente, propor novos caminhos para esta nação.

Mas, estas veredas ainda precisam ser abertas. Vanda avalia que houve um grande esvaziamento do movimento negro nos últimos dez anos, muito por conta das divergências partidárias, o que mostra que o governo de Luis Inácio também influiu negativamente nessa articulação. Muitas lideranças importantes foram cooptadas para ocupar cargos no governo, deixando a militância sem constituir novas lideranças. Em consequência, o Projeto do Povo Negro também caiu no esquecimento e até o Congresso que estava pensado para 2010 não aconteceu por conta da desmobilização. Mesmo o Estatuto da Igualdade Racial não é considerado um grande avanço, porque ele de nada adianta se não há um movimento forte a impulsionar as conquistas.

Desmontado pela política das ONGs e pela acomodação no governo petista, as lideranças do que ainda resta de movimento negro no Brasil estão em grande desvantagem no debate sobre a plurinacionalidade. Porque precisam empreender grandes esforços para manter minimamente o que de mais próximo têm de um espaço geográfico próprio, que são os quilombos. “Apesar de existirem em quase todos os estados, há muito pouco do pensamento africano sendo trabalhado nos quilombos. O que temos é algo da forma de produzir e alguns laços culturais muito tênues. Temos observado um avanço significativo das religiões evangélicas dentro dos quilombos, o que também ajuda a destruir as lembranças da religiosidade africana. Tudo isso vai levando também a uma perda sistemática do território, pois as pessoas vão se integrando à vida fora do quilombo”. Não bastasse isso, ainda precisariam avançar significativamente no debate da sua condição subalterna – mesmo quando maioria numérica – na sociedade brasileira.

Em Santa Catarina, o MNU trabalha nos dez quilombos certificados, embora existam pelo menos mais dez, também seguidos de perto pelo movimento. Um deles, o da Invernada, tem sido acompanhado sistematicamente por mais de dez anos e ainda assim os avanços são muito poucos. “Temos trabalhado a música, a identidade, o modo de vida, mas não é coisa fácil. No Morro do Fortunato o quilombo conseguiu eliminar as cercas, as casinhas ficam próximas e as pessoas se comunicam gritando umas para as outras. Isso faz parte da cultura africana. Lá, por estar em cima de um morro, mais distante da cidade, a comunidade tem conseguido avançar”.

A coordenadora nacional do MNU sabe que esta é uma luta inconclusa e difícil. “Nós temos maioria negra no país, mas também tivemos 500 anos de dominação, décadas de ditadura e há muito pouco tempo conseguimos conhecer nossa história. Nós agora estamos recuperando isso, mostrando que tivemos guerreiros, vencedores, que temos um pensamento próprio, uma cultura. Isso precisa ser construído todos os dias, nas escolas, na família, nos meios de comunicação. Nossa empreitada é fortalecer essa identidade, e só depois disso podemos lutar por território”. Segundo Vanda, os negros ainda estão num processo de tentativa de inclusão no mundo capitalista que aí está. Romper com essa idéia é tarefa difícil demais, mas não impossível.

Marilu Lima, coordenadora do Projeto Antonieta de Barros, da Assembléia Legislativa de Santa Catarina, que procura oferecer instrumentos para os jovens negros estudarem e entrarem no mercado de trabalho, é uma das que percebe que negros estão mais preocupados agora com a inclusão no sistema e por isso não conseguem passar de determinado ponto. “Isso não significa o fracasso do negro, mas sim do sistema capitalista”. Na verdade, ela admite que questões como autonomia cultural e política – elementos da idéia da plurinacionalidade  – ainda não conseguiram entrar na agenda do movimento negro. O projeto, que leva o nome da primeira negra a se eleger deputada estadual em Santa Catarina, Antonieta de Barros,  ocupa mais de 200 adolescentes numa proposta de estágio. Mas, no fundo, acaba sendo apenas uma forma de garantir a sobrevivência.

Kleber Bitencout é um jovem negro que atua no projeto da AL de Santa Catarina. Ele admite que aquele é um espaço de expansão do negro dentro do sistema. Morador da Comunidade do Mocotó, em Florianópolis, ele faz parte de um grupo de estudos no qual os jovens discutem temas como cotas, educação, violência. “Não chegamos a discutir coisas como plurinacionalidade”. E, na verdade, como já admitiu Vanda, o próprio Movimento Negro não tem isso na sua agenda.

Segundo Kleber o racismo é coisa tão presente na vida dos negros que fica bem difícil avançar na discussão de outro modo de organizar a vida. Ele lembra que mesmo sendo um estudante universitário, não está imune dos ataques de racismo. “Tive um professor que dizia: eu mandaria esses negros todos de volta para África. Assim como também já sofri discriminação por ser quem sou. Por estar sem documento fui confundido com um assaltante. É o racismo. A gente está todo o dia lidando com isso”.

Há muito que avançar no Brasil

A partir de um acompanhamento sistemático de jornais nacionais, em cada estado brasileiro, temos observado que tanto a questão indígena como as que envolvem o negro, muito pouco aparecem. No caso dos povos originários são ações muito pontuais, como as relacionadas à saúde, algum tipo de violência contra indígenas, casos de demarcação de terra. No que diz respeito aos negros, um ou outro caso de racismo, desconectado da totalidade da questão, ou alguma reportagem sobre população carcerária e marginalidade. Não há um debate real sobre os elementos que envolvem a quase exclusão destas importantes culturas da vida nacional. Não se fala muito sobre as políticas públicas ligadas a elas e muito menos sobre a possibilidade de se organizarem como nacionalidades autônomas e livres.

O fato é que a cultura invasora, europeia, branca, impôs anos e anos de submissão com esse projeto de capitalismo dependente e subdesenvolvido, que levaram a um profundo sentimento de inferioridade. A difusão de que o belo é ser branco, o culto é ser formado pelas escolas tradicionais e o bom é ser cristão levaram as populações autóctones e as comunidades negras a sentirem suas crenças e cultura como coisa errada e inferior, criando um caldo perfeito para a dominação. Hoje, os movimentos originários em toda a América Latina estão em processo de libertação dessa visão colonial, ainda dependente e preconceituosa, gestando assim um campo fértil para o nascimento de uma identidade latino-americana fora dos padrões impostos pela cultura alienígena. É a possibilidade concreta de se fazer aquilo que ensinava o educador Simón Rodríguez ao dizer: ou inventamos ou erramos! Para os povos originários é chegada a hora de inventar. Cabe também à comunidade negra encontrar caminhos de libertação que possam garantir o fim do racismo e a retomada de uma vida em consonância com suas heranças ancestrais, tendo como sul propostas mais generosas como o socialismo, ou o sumak causay ou qualquer outra “inventada” pelas gentes daqui .

 


[1] Almeira, Ileana. El Estado Plurinacional. Valor histórico y libertad política para los indígenas ecuatorianos. Abya Yala: Quito, 2008.

 

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