O ano de 1993: leituras sobre o amanhã

Por Clarissa Peixoto

IMG_20150130_112819Na controversa divisa entre a frase e o verso, “O ano de 1993”, de José Saramago, é um texto que denota uma peculiar capacidade de observação do mundo, transcrita através da sensibilidade de um exímio observador.  Em 2015, o livro completa 40 anos e permanece uma leitura essencial para compreender o autor e sua obra. Tido como o terceiro livro da sua produção poética, transcende à forma literária tradicional, narrando em forma de poesia ou poetizando em forma de narrativa.

Em um futuro hipotético, homens e mulheres habitam um mundo devastado, em que forças ocultas disseminam a violência para fins de mantê-los sob seus domínios. Hordas humanas perambulam por campos e desertos, aterrorizadas por animais mecanicamente modificados.  A forma não convencional da escrita, as figuras alegóricas de que o escritor faz uso e a forma perturbadora como descreve a vida nesse mundo, tornam a leitura, sem dúvida, instigante. Para compreender suas entrelinhas, é importante atentar para a visão de mundo de Saramago, fortemente marcada pela observação minuciosa da realidade, além, claro, do seu engajamento político. O texto, escrito um ano após a Revolução dos Cravos, é uma crítica ao fascismo, apontando para a barbárie como consequência.

A obra reflete sobre o totalitarismo do estado que se realiza não apenas pela força das armas, mas pela força da ideologia:

“O comandante das tropas de ocupação tem um feiticeiro no seu estado-maior. Mas o sentido da honra militar embora condescendente noutros casos sempre o impediu de utilizar esses poderes sobrenaturais para ganhar batalhas. O feiticeiro apenas intervém quando ao comandante das tropas de ocupação apraz usar o chicote. Nessas ocasiões saem ambos para os arredores da cidade e postos num ponto alto convoca o mágico os poderes ocultos e por eles reduz a cidade ao tamanho de um corpo humano. Então o comandante das tropas de ocupação faz estalar três vezes a ponta para habituar o braço e logo a seguir chicoteia a cidade até se cansar. O feiticeiro que, entretanto assistira respeitosamente afastado apela para os poderes ocultos contrários e a cidade torna ao seu tamanho natural. Sempre que isso acontece, os habitantes ao encontrarem-se nas ruas, perguntam uns aos outros que sinais são aqueles de chicotadas na cara. Quando tão seguros estão de que ninguém chicoteou nem tal consentiriam”.

Nesse recorte, podemos observar elementos fundamentais de que dispõe o campo hegemônico para submeter as pessoas e garantir a manutenção do status quo, como a mitificação religiosa, a fragmentação ou individualização do ser coletivo e a força do aparato de coerção.

Da barbárie à utopia

Todo enredo de “O ano de 1993” se localiza na violência, no terror e no medo. É a guerra talvez o principal elemento do livro e a descrição do campo de batalha me parece uma excelente representação daquilo que o filósofo Domenico Losurdo afirmou sobre as modalidades da luta de classe no atual estágio da humanidade. No campo de guerra de Saramago, como nas feições da luta de classes apontadas por Losurdo, trabalhadores mortos, mulheres violadas e povos submetidos. No entanto, não sem apresentar alguma resistência diante da violência:

“Está determinado que hoje se travará uma grande batalha e não obstante o número de mortos previsto assim se fará. Nunca a certeza dos mortos evitou uma guerra muito menos em 1993 quando os escrúpulos não são prisão e impedimento. […]  Apenas porque o ódio entrou enfim no corpo das mulheres. Será visto que, estando mortos os homens perseguidos, os perseguidores hão de violá-las conforme mandam as imemoriais regras da guerra […] Por isso a longa fileira de mulheres deitadas espera com indiferença que é simulada a penetração dos perseguidores. […]  Silenciosamente suportam o assalto e abrem os braços enquanto a raiva corre pelo sangue para o centro do corpo. Há um derradeiro momento em que o perseguidor ainda poderia retirar-se. Mas logo é tarde e no exacto instante em que o espasmo militarmente iria deflagrar. Com um estalo seco e definitivo os dentes que o ódio fizera nascer nas vulvas frenéticas. Cortam cerce os pénis do exército perseguidor que as vaginas cospem para fora e com o mesmo desprezo com que os homens perseguidos haviam sido degolados”.

Para Saramago, a obra é um manifesto contra toda a forma de violência e opressão, com o olhar para a transformação da realidade. O livro traz consigo a esperança na utopia não como algo que não realizaremos, mas como um lugar em que se refletem os esforços práticos do hoje. O Saramago que floresce perspectivas para a humanidade em 1975 dá indícios daquilo que propunha 30 anos depois, no Fórum Social Mundial de 2005, ao sugerir riscar dos dicionários a palavra utopia e substituí-la pela palavra amanhã. O objetivo do autor, talvez, seria transformar em força concreta os anseios por um novo mundo, possível a partir de uma construção cotidiana.

Sintético, o amanhã daquele mundo de agruras é revolvido pela ventania da mudança: “Levantou-se então um grande vento que varreu de estrema a estrema entre o mar e a fronteira a terra dos homens […] O dia amanheceu numa terra livre por onde corriam soltos e claros os rios e onde as montanhas azuis mal repousavam sobre as planícies”.

Perturbador e atual, “O ano de 1993” é uma reflexão essencial sobre possíveis amanhãs, diante da força (ou não) dos ventos da transformação presente.

Referências:

O ano de 1993, José Saramago. Companhia das Letras, 2007.

Losurdo: produção das emoções é novo estágio do controle da classe dominante. Opera Mundi, 2013.

O futuro do passado: O Ano de 1993 de José Saramago, Luciana Stegagno Picchio. Associação Internacional de Lusitanistas.

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