O amargo impacto ambiental dos cafés em cápsula

Destinação difícil, falhas de concepção, falta de postos de coleta… Sobram problemas para o descarte de um produto apreciado, mas poluente

Por Guilherme Zocchio.

Desde que ganhou uma como presente, a arquiteta Ana Paula Lopes, 27, utiliza sua máquina de café em cápsulas quase todos os dias. A praticidade de obter uma bebida quente e saborosa com rapidez são incentivos. A quantidade de lixo produzida, cujo descarte é incerto para muita gente, faz, no entanto, com que ela tenha, ao mesmo tempo, preocupação. Junto com o marido, ambos descartam cerca de 50 recipientes do produto por mês.

Lopes diz que, para as compras, prefere as empresas que, na avaliação dela, são mais transparentes ao divulgar a forma correta de descarte dos resíduos. Devolve as cápsulas nos mesmos pontos de venda onde costuma comprá-las e evita aquelas feitas com plástico. “Deixo na loja com esperança de que as cápsulas sejam recicladas, mas, como todo lixo que você leva, existe a chance de isso não acontecer”, ela afirma. De fato. Não importa a marca, o blend ou a embalagem, a logística reversa do produto apresenta problemas — e não são poucos.

O descarte do saboroso café em cápsula depende de um complexo processo industrial que ainda não atende a totalidade de resíduos produzidos. Criadora desta linha de bebidas em 1986, a Nespresso, por exemplo, reciclou 17% do total de materiais que recolheu no Brasil em 2018. Pertencente à multinacional Nestlé, a marca afirma que pretende chegar a 100% em 2020. Mas, para atingir a meta, pode ter que acelerar o ritmo dos investimentos em logística reversa. A taxa precisa crescer. Em 2016, a empresa reciclou 8,6% e, em 2017, 13,3%. Os números estão em documentos da companhia destinados aos consumidores.

A reciclagem das cápsulas é trabalhosa. Envolve separar os restos de café do recipiente plástico ou de alumínio. Para isso, algumas marcas dispõem de uma esteira mecânica que agita em alta velocidade os reservatórios e os separa da parte orgânica. “Após recebermos as cápsulas no armazém e estas atingirem a quantidade mínima para processamento, elas passam por um moinho triturador para serem separadas da borra. É utilizada uma esteira vibratória que auxilia na separação”, explica, em nota à reportagem, a companhia de reciclagem Terra Cycle.

“No caso das cápsulas de plástico, depois da moagem e micronização (moagem ultrafina), o material é extrusado, ou seja, derretido e moldado na forma de um espaguete que posteriormente é granulado, formando assim grãos plásticos denominados pellets. Os pellets são derretidos para serem moldados e transformados em novos produtos como vasos de planta, cones de trânsito, pás e baldes de lixo etc.”, continua a nota da empresa, que recolhe os resíduos da Melitta e da JDE, detentora das marcas Pilão, Pelé, entre outras.

“No caso das cápsulas de alumínio, após a separação da borra, o material é transformado em lingotes, que vão para indústria secundária do alumínio. A borra é encaminhada para a compostagem”, acrescenta a Terra Cycle. No momento, somente empresas detêm a tecnologia  — veja como é no vídeo abaixo, em inglês, produzido pela Nespresso. Cooperativas, até então, limitam-se a fazer a triagem para vender os resíduos de volta às companhias.

Consultado pelo Joio, o Movimento Nacional de Catadores diz haver poucas cooperativas que trabalham com os materiais, sem um número exato, mesmo em São Paulo, a maior metrópole do país. Uma delas é a Cooperativa de Catadores Seletivos Parque Cocaia, no bairro do Grajaú, na zona sul da cidade. “É um material que é difícil de trabalhar, e o que vem para mim é muito pouco, chego a fazer 100 kg a cada dois meses”, afirma Fernando Pereira Santos, diretor financeiro da central. O valor de revenda, segundo ele, também não é muito lucrativo.

Venham dos catadores ou dos consumidores, as cápsulas, após descarte, tendem a chegar nos pontos de coleta, que costumam ser também as lojas. O grupo 3corações oferece unidades para isso em sete cidades: São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Jericoacoara e Fernando de Noronha. A Nespresso, por sua vez, tem 90 postos de recolhimento em todo o Brasil e duas unidades de reciclagem em São Paulo.

O país tem 5.570 municípios, e a diferença entre o número de cidades e o de locais de coleta desperta, não sem razão, e no mínimo, críticas.

Ganha uma xícara de café quem se lembrar do nome da empresa que usa até mesmo barcos para vender seus produtos pela Amazônia — com a devida licença de parodiar o jornalista Elio Gaspari.

“Você vê que não há postos de coleta em todos os locais que se consome o café. São mais de 5 mil municípios brasileiros. As empresas dizem que recolhem quando entregam as cápsulas compradas pelos consumidores. Mas há muitos lugares em que não há este sistema ou uma central de triagem”, afirma a socióloga Elisabeth Grimberg, que é coordenadora de Resíduos Sólidos do Instituto Pólis, representante da América Latina da Aliança Global Alternativas à Incineração (GAIA) e integrante da Aliança Resíduo Zero Brasil.

“Nos casos em que não há coleta, o consumidor terá que abrir a cápsula, retirar os restos e lavar o recipiente”, ela acrescenta. “Imagine um consumidor tendo que fazer isso, onde não tem posto de coleta. Isso é muito idealizado, de que vai para a compostagem a borra e a outra parte vai ser reciclada. Eu trabalho há 30 anos com descarte de resíduos e, mesmo em cidades onde isso acontece bem, há problemas para manter o padrão de qualidade.”

Todas as empresas que conversaram com o Joio, como Nestlé, 3corações, JDE, Melitta, as maiores do ramo, afirmam que estão trabalhando para ampliar o serviço de coleta das cápsulas. É comum que, quando entregam um produto, recolham os já utilizados. Além disso, elas declaram que oferecem informações para incentivar o consumidor a participar corretamente da cadeia de logística reversa.

Uma consulta rápida ao site de qualquer companhia do setor deixa explicações à vista, ou para descarte ou para eventualmente reaproveitar os materiais. As corporações dizem trabalhar para evitar com que recipientes sejam destinados a lixões ou incinerados.

O especialista em economia circular da Zero Waste Europe, o italiano Enzo Favoino, critica o discurso e cobra as empresas por mais iniciativas, globais e locais. “Elas tendem a mostrar desempenhos muito mais altos do que conseguem ter de verdade. Simplesmente reforçam a transmissão da mensagem principal ‘continue usando cápsulas, já que podemos reciclar-las’, o que só acontece com uma pequena porcentagem.”

O foco na ponta final do consumo de certos materiais, além disso, obscurece um problema que pode estar na concepção. Este é o alerta do especialista em energia e sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o engenheiro Clauber Leite. “Muitas vezes, a única possibilidade de não gerar resíduos é no design, no momento em que você está tendo a ideia daquele produto. Além da utilidade, um dos itens a se pensar é o que vai ser dele pós-consumo, e isso acho que poucos designers levam em consideração”, afirma.

“O ciclo de descarte dos produtos deve ser pensado desde a etapa de criação, o que não  aconteceu com os cafés em cápsulas”, complementa o engenheiro. Ele lembra que esta é uma das premissas da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que versa sobre a logística reversa no Brasil, sancionada em 2010.

Grimberg, por sua vez, acredita que outro problema é a criação de mercadorias apenas para consumo, pois elas não correspondem a necessidades reais das pessoas. Um café em cápsula não é um bem vital, segundo ela. “Há toda a pegada ecológica e de uso de recursos naturais que não seriam necessários, a rigor. Estamos discutindo uma política nacional e a mudança do padrão de oferta e demanda. Se não for produzido e consumido, não vai precisar criar essa necessidade de destinação.”

Recipientes de café descartados (Foto: Andrés Nieto Porras/Wikimedia)

A consultora em sustentabilidade da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), Paula Tavares, diz que a entidade disponibiliza materiais e oferece orientação técnica para que as empresas associadas cumpram a PNRS. “Além disso, a ABIC tem realizado campanhas de conscientização do consumidor, com foco na destinação das cápsulas após o consumo.”

Os últimos estudos sobre o descarte de cápsulas de café no Brasil datam de 2016. Eles foram conduzidos pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A conclusão, à época, era que o setor não providenciava uma destinação conforme a PNRS. Segundo as pesquisas, apesar de a indústria classificar as cápsulas como recicláveis, a reutilização do material era inviável. Estes resultados foram divulgados por reportagem da jornalista Mariana Alvim no jornal O Globo.

Procurada pelo Joio, a Proteste afirmou que não deu continuidade aos estudos.

Alumínio, plástico, resíduos

Um dos argumentos utilizados para minimizar o impacto ambiental das cápsulas de café é o de que são feitas com plásticos ou alumínio. E este material, em teoria, ou é totalmente reciclável ou pode ser reaproveitado para outros fins. Entretanto, ele demanda grandes quantidades de energia para ser produzido. Grandes mesmo. Para a obtenção do metal, o minério bauxita, que serve de matéria-prima, precisa sofrer, em uma das etapas de transformação, uma volumosa quantidade descargas elétricas.

Uma observação do setor de beneficiamento industrial de commodities deixa isso à vista. No último relatório de sustentabilidade, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) indica que consumiu cerca de 9,27 bilhões de kWh com suas atividades em um único ano, embora ela não processe o metal utilizado nas cápsulas de café.

A empresa diz, no documento, que 96% do total de energia que consome vem de usinas hidrelétricas próprias. A quantia, no entanto, é três vezes superior ao que foi utilizada ao longo de 2018 no município de Guarulhos, de 1,3 milhão de habitantes, segundo medição da Secretaria Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a CBA não se manifestou até a publicação desta reportagem.

A Nespresso estima que 75% de todo o alumínio já produzido no mundo ainda está em uso. Mas a especialista em resíduos sólidos Grimberg afirma que o alumínio precisa de uma quantidade de matéria virgem de bauxita para reciclagem.

Além disso, ela lembra, a reciclagem, como todo processo industrial, demanda energia elétrica e também produz resíduos. “O que é que as cápsulas têm a destacar? A questão da descartabilidade em um planeta que está extremamente pressionado, cujos recursos naturais estão pressionadas pela extração excessiva.”

Além das cápsulas em alumínio, existem aquelas de plástico, e não há material mais simbólico dos problemas ambientais contemporâneos. Onipresente, ele recobre os oceanos com sacolinhas (consumidas à marca de 1,5 milhão por hora, no Brasil, segundo estimativas do Ministério do Meio Ambiente), chega a lixões em vez de seguir para reciclagem e já foi até encontrado em partículas microscópicas na água potável.

Há algumas versões dos recipientes plásticos que são reutilizáveis, mas nem todas, e têm limitações. A arquiteta Lopes diz que recorre a esta opção sempre que possível. “Eu tenho algumas. Eu preencho com o café moído em casa antes de colocar na máquina. Mas não dá para guardar por muito tempo porque não é hermética, como as cápsulas prontas, e o café perde aroma e sabor. Atualmente, tenho procurado utilizá-las”, conta.

Para Favoino, da Zero Waste Europe, a melhor alternativa para mitigar os impactos ambientais no curto prazo seria a utilização de itens biodegradáveis. “Enquanto os problemas persistem, também nos preocupamos com estratégias de transição. A melhor delas até agora tem sido a adoção de versões degradáveis, projetadas por cafeterias italianas com o apoio da Zero Waste. Elas podem ser coletadas junto com os orgânicos e depois levadas para centrais de compostagem.”

Esta proposta pode ser mais atrativa para os consumidores. “Dentro das possibilidades, a alternativa sustentável é a que eu vou adotar”, comenta Lopes.

A política no lixo

Lixão em Samambaia Sul, no Distrito Federal (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado – 2017)

Toda esta discussão cafeinada remete a uma questão maior. Apesar de quase uma década de existência da PNRS, o lixo persiste como um problema mal resolvido no Brasil. A lei, sancionada em agosto de 2010, define regras para a destinação de rejeitos, incentivando a coleta seletiva e o reaproveitamento de materiais, quando possível. No entanto, em que pese alguns esforços para efetivá-la, há dois problemas que são mais recorrentes. Primeiro, a destinação incorreta. Depois, o aumento da geração de resíduos.

Estas duas constatações estão presentes na 15ª edição de um relatório elaborado pela Associação Brasileira Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) sobre a PNRS. “Os brasileiros estão gerando mais resíduos, mais municípios enviam lixo para lixões, e a coleta seletiva não avança”, afirma a entidade. A divulgação do estudo foi antecipada por reportagem de Mara Gama no jornal Folha de S. Paulo.

Segundo a Abrelpe, 18% de todos os rejeitos produzidos no país em 2017, último ano do levantamento, seguiram para lixões. A percentagem equivale a 7 milhões de toneladas que não receberam a devida destinação. O relatório também mostra que cresceu o número de municípios brasileiros que descartam incorretamente os resíduos. A PRNS estabeleceu que os lixões deveriam ter deixado de existir até 2014 para se tornarem aterros sanitários, algo que, cinco anos depois, ainda não aconteceu como previsto.

Além disso, a população brasileira aumentou nas áreas urbanas a quantidade de descarte de resíduos, conforme a comparação dos últimos dois anos pela Abrelpe. A geração de resíduos sólidos urbanos foi de 78,4 milhões de toneladas em 2017, um aumento de cerca de 1% em relação a 2016.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.