Nota do Conselho do Cimi: Vivemos um contexto onde tenta-se impor um regime de exceção

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Vivemos um contexto onde tenta-se impor aos povos indígenas um regime de exceção

“A verdade que liberta”

O Conselho do Cimi, composto pelas coordenações regionais e diretoria da entidade, reunido de 06 a 09 de junho, em Luziânia, Goiás, refletindo sobre o contexto sociopolítico, econômico e jurídico pelo qual passa o Brasil, vem a público para manifestar sua inconformidade e seu repúdio aos ataques institucionais desencadeados contra povos indígenas, seus direitos e aliados.

Violentam-se os direitos fundamentais dos trabalhadores, dos aposentados, dos estudantes, das comunidades e povos originários e tradicionais e violenta-se também ao meio ambiente. Há, nas esferas políticas do país, a deliberação irresponsável de se promover, o que estão denominando de reformas, que nada mais são do que medidas políticas e jurídicas de exceção para retirar da população direitos, benefícios e garantias constitucionais – especialmente das que mais contribuem com o Estado através de seu trabalho, dos tributos e impostos.

Simultaneamente aos crimes ambientais, crescem dramaticamente as violências praticadas por ruralistas e madeireiros contra comunidades e lideranças empenhadas na defesa de seus territórios. No Maranhão, agressores – dentre eles políticos locais, prefeitos, policiais, madeireiros, fazendeiros – articulados publicamente nas praças e através de programas de rádios invadiram e atacaram com crueldade o povo Gamela. Pessoas foram baleadas, espancadas e mutiladas. Diante desses fatos tão graves, assistimos a inércia das autoridades federais que, em vez de interromper, estimula o círculo de violência contra os povos.

Preocupa, acima de tudo, o modo como a questão indígena vem sendo tratada no âmbito dos Três Poderes da República.

No Executivo está em curso a política de abandono dos serviços essenciais: deixa-se de investir nas ações que assegurem assistência às pessoas e a promoção das demarcações das terras. Com profunda preocupação observamos a desestruturação dos órgãos de Estado que prestam, mesmo precariamente, assistência às populações indígenas, quilombolas, camponeses e que promovem a fiscalização e proteção do meio ambiente. É grave o fato de a Fundação Nacional do Índio (Funai) estar sem recursos financeiros para realizar os serviços básicos junto aos povos indígenas e, ao mesmo tempo, sendo instrumentalizada pelo governo federal para atender interesses que estrangulam a vida dos povos indígenas, seja por setores religiosos fundamentalistas, integracionistas ou vinculados ao agronegócio.

O governo Temer paralisou por completo os procedimentos de demarcação de terras indígenas que já vinham sendo conduzidos com morosidade. Nenhuma terra indígena foi homologada pelo Presidente da República, nem mesmo declarada pelo Ministro da Justiça no mandato do golpe. A ofensiva contra áreas demarcadas faz parte da política predatória adotada pelo Estado, que estimula os crimes de invasão, depredação e devastação dos bens da natureza no interior de terras indígenas devidamente demarcadas.

No Legislativo verificamos uma verdadeira perseguição aos indígenas, quilombolas e seus aliados. Criam-se projetos de leis e de emendas à Constituição com o intento de restringir o alcance dos direitos destes povos e comunidades, especialmente as demarcações das terras. Parlamentares da bancada ruralista agem deliberadamente para inviabilizar a aplicabilidade dos preceitos constitucionais e não medem esforços no sentido de desqualificar os direitos e promover campanhas e ações anti-indígenas fomentando, inclusive, práticas de violência física contra comunidades e lideranças.

Não satisfeitos com o arquivamento do relatório da CPI do Cimi da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, os ruralistas da Câmara dos Deputados criaram a Comissão Parlamentar de Inquérito contra a Funai e o Incra copiando e requentando acusações fraudulentas rejeitadas pelo arquivamento do relatório da CPI do Cimi. Na CPI da Funai/Incra, promove-se a  criminalização de indígenas, quilombolas, servidores públicos, procuradores da República, antropólogos, indigenistas e missionários. Os parlamentares ruralistas sentem-se acima da lei e da ordem pública, desencadeiam e consolidam práticas próprias dos regimes de exceção.

No que se refere ao Poder Judiciário, observamos que as decisões contra os direitos dos indígenas se avolumam desde a primeira instância até os tribunais superiores. Novamente percebemos que as decisões seguem a lógica da defesa dos interesses dos proprietários privados em detrimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas. O fundamento das decisões judiciais contra as demarcações de terras localiza-se no que vem sendo denominado de marco temporal da Constituição Federal de 1988, que interpreta a Lei Maior de forma restritiva: “Se os indígenas não estivessem sobre a terra reivindicada no dia 05 de outubro de 1988, vivendo nela ou em conflito lutando física ou juridicamente por ela, perderam o direito à demarcação”. Com essa interpretação, toda e qualquer posse não indígena de terras tomadas dos povos originários, inclusive com uso de violência pelo Estado e por particulares, até o dia 04 de outubro de 1988 estaria legitimada e legalizada. Essa possibilidade jurídica, mesmo sem estar consolidada, já alimenta nova fase de violência e esbulho territorial e apossamento ilegal de terras indígenas plenamente demarcadas, onde se observam práticas de loteamento, venda de lotes, fixação de moradores não-indígenas, que promovem o desmatamento e uso das terras especialmente nos estados de Rondônia e Pará. Como se vê, também no Judiciário está fortalecida uma concepção de direito de exceção, onde o “direito de propriedade” se sobrepõe aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

O Conselho do Cimi externa sua preocupação diante deste contexto adverso aos direitos indígenas e dos demais segmentos da população, por avaliar que se trata de um período da história onde os poderes públicos exercem suas atribuições dentro de um regime jurídico assemelhado ao do regime de exceção. Nenhuma CPI vai conseguir que, com meras preocupações institucionais próprias, desviemos nosso olhar dos verdadeiros problemas do Brasil, dentre os quais, a violência física, institucional e política do campo e da cidade contra os povos indígenas. Nesse momento histórico em que vivemos, dar voz ao sofrimento dos povos indígenas, apontar para o regime de exceção e denunciar a corrupção da ética cidadã significa zelar pela verdade que liberta.

Brasília, DF, 12 de junho de 2017.

Fonte: Cimi.

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