Nós, os normais

Por Fernando Evangelista.

Imagens: Juliana Kroeger.

A vida é o acúmulo de algumas alegrias e muitas encrencas. Eu entrei numa encrenca em 2008, ao iniciar a produção de um documentário sobre a Coepad, a primeira cooperativa no Brasil formada por portadores de deficiência intelectual.

Tinha tudo para dar certo: história inédita e impactante, personagens extraordinários, baixo custo de produção. Pelas minhas previsões, o filme estaria pronto no final de 2009. Dei com os burros n’água.

O trabalho realizado pela Coepad (Cooperativa Social de Pais, Amigos e Portadores de Deficiência) é reciclar papéis. A partir da reciclagem são produzidos cadernos, blocos, agendas, canudos de formatura, bolsas ecológicas, entre outros produtos.

A sede da Coepad é no Estreito, parte continental de Florianópolis, e seu ponto de venda é o Centro de Cultura e Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A cooperativa está dividida por oficinas: reciclagem, cartonagem, acabamento gráfico e serigrafia. Em cada um desses setores, além dos cooperados, trabalha um funcionário sem deficiência, cumprindo a função de coordenador. Muitos voluntários ajudam no serviço.

Nas primeiras semanas das gravações, em pareceria com a jornalista Juliana Kroeger, ficou claro que o contagiante clima de alegria daquele ambiente deveria ser o foco do documentário. “As pessoas são felizes aqui”, resumiu o bioquímico Aldo Brito, idealizador e presidente da cooperativa. “Elas são felizes e orgulhosas do que construíram”.

 

E aí começou a minha encrenca: como captar esse clima, como captar a dimensão e a beleza deste projeto sem cair nos lugares-comuns, sem sentimentalismos bobos, sem parecer didático ou institucional?

Abri o jogo com os cooperados, falei da dificuldade em traduzir em imagens o que mais me impressionara. Angélica Medved, portadora de síndrome de Down, funcionária do setor de cartonagem, sugeriu:

– Você deve mostrar o quanto amamos trabalhar aqui e, mais importante, o quanto nós nos amamos.

Achei a resposta linda e sincera, mas o diabo da encrenca continuava igual. X
– Como mostrar este amor? – perguntei. Ela ameaçou um sorriso discreto, como quem diz: ‘entendo e perdôo a sua ignorância’.

– É simples – ela respondeu. – Mostre a maneira como fazemos cada um dos produtos e como nós, os cooperados, nos relacionamos.

Segui esses conselhos. Percebi que a base da alegria é a amorosidade entre eles, visível no cuidado de uns com os outros. Aqueles com mais facilidade em determinada tarefa explicam ao colega como fazer, sem autoritarismo ou arrogância. Mas existem alguns problemas, lógico, e a dificuldade financeira é o maior deles.

Fora dali, muitos são e foram vítimas de preconceitos. Um exemplo: em maio deste ano, duas cooperadas foram impedidas de se matricularem na Academia Floripa Fitness, na Avenida Mauro Ramos, centro de Florianópolis. Motivo: as duas são portadores de síndrome de Down.

O ato do proprietário da academia é ilegal, por ferir o artigo 5º da Constituição Federal. Embora revoltante, o fato é mais comum do que se imagina. Durante séculos, portas permaneceram fechadas para as minorias, que estão aprendendo a abri-las à força, numa luta diária e quase sempre anônima.
De acordo com dados do IBGE, existem mais de três milhões de pessoas portadoras de deficiência intelectual no Brasil. Se o desemprego atinge 8% da população economicamente ativa, esse número sobe para mais de 90% para as pessoas que apresentam alguma deficiência.

 
 Fabiana e Angélica: “existem coisas que a câmera não entende”

Diante deste quadro e do que Angélica me disse, fiquei pensando como nós, os considerados normais, temos deficiências elementares. De um modo geral, e com os mais próximos em particular, fechamos portas diariamente: não sabemos ouvir, não sabemos cuidar, não nos importamos. Mas somos normais.

Boa parte do nosso trabalho é feita com sacrifício e sem prazer. Mas somos normais. Não sabemos perceber onde está o amor ou como comunicá-lo, simplesmente desaprendemos a reconhecê-lo. Mas somos normais.


O documentário será lançado em novembro deste ano e a cena inicial deverá ser uma frase da artista plástica Fabiana Brito, portadora de síndrome de Down, melhor amiga de Angélica. Para consolar minha angústia em não conseguir captar o essencial daquela história, Fabiana disse: “existem coisas que a câmera não entende”.

Existem infinitas coisas que os “normais”, assim mesmo, entre aspas, não conseguem entender. Por isso, nossa encrenca será permanente. Às vezes, porém, essa encrenca torna-se uma inesperada lição de vida.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

 

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