Normalidade Fabricada

Por CJ Hopkins.

Em Diário Liberdade.

Mais ou menos em meados de novembro, pouco antes da derrota de Hillary (refiro-me ao início da morte da democracia nos EUA), uma gangue de autonomeados Guardiães da Realidade, codinome “mídia-empresa”, lançaram uma campanha de marketing contra o mal-em-si e pérfido flagelo consubstanciado no rótulo “notícias falsas” [ing. “fake news”]. A campanha virou febre.

Veículos da mídia-empresa em todos os cantos do império só fazem repetir e repetir avisos para que todos os súditos se precavenham contra a ameaça existencial que é, contra nossas liberdades, a onda de “notícias falsas”. Mas não se trata de simples desinformação, propaganda e tal… De fato, a ameaça já nos ameaça há milhares de anos. A verdade está sob ataque. Alguém está sacudindo os próprios pilares fundacionais sobre os quais a Realidade se assenta.

Quem está por trás da ameaça que nos chega sob o formato de “notícias falsas”? Ora… Putin, claro, sim, mas não só ele. Parece estar em andamento uma vasta conspiração de tipos subversivos e virulentos anti-establishmentultra-alt-rightists extremistas, esquerdistas extremistas, aposentados anti-impostos, socialistas de poltrona, sanderistas, corbynistas, terroristas ontológicos, terroristas genéticos, terroristas por parte de pai, agentes normalizadores do fascismo, deploráveis antiglobalização, e todas as variedades de jardim de odiadores de Clinton.

Para sorte nossa, a mídia-empresa está há tempo à caça desse enxame de canalhas. Como você provavelmente já ouviu dizer, The Washington Post publicou recentemente matéria da lavra do talento de jornalistas Prêmio Pulitzer de jornalismo investigativo, na qual, desavergonhadamente, aquelas sumidades caluniam centenas de publicações da mídia-não-empresarial (como essa que você lê nesse instante), chamando-nos de “repetidores de propaganda russa.”

A peça, já um clássico do jornalismo serviço-sujo-McCarthyista perpetrado por Craig Timberg do Post, ‘baseava-se’ em acusações paranoicas, absolutamente sem qualquer fundamento do que Timberg chama, sem qualquer ironia, de “duas equipes de pesquisadores independentes”: The Foreign Policy Research Institute, um think-tank de quinta categoria, que muito ganhou dinheiro com publicações anticomunistas; e um website anônimo, propornot.com, do qual ninguém jamais ouvira falar antes de surgir repentinamente em agosto passado na Internet, e que, se se lê o que publica, parece administrado por Beavis and Butthead.

The Washington Post conseguiu alguma ‘repercussão’ pela corajosa posição ‘pró-verdade’ contra as forças da falsidade e dissimulação putinistas. Uma legião de perigosas publicações extremistas, feito CounterPunchThe InterceptRolling StoneThe NationThe New YorkerFortune MagazineBloomberg, e US News & World Report, atacaram o Post por suas práticas de “baixa qualidade”, “negligentes” e, de modo geral, não recomendadas pelo bom jornalismo. The Post, claro, está “dando apoio ao homem deles” e recusa-se a pedir desculpas por “defender a democracia”, como defendeu ao longo de toda sua trajetória, como quando tentou assassinar a reputação de Gary Webb como recompensa por ele ter noticiado a conexão entre a CIA e os “Contra” na Nicarágua, o que praticamente destruiu a carreira do jornalista; ou como quando descaradamente pôs-se a fazer campanha a favor de Hillary Clinton, campanha vergonhosa, de promover guerras e mais guerras, com 16 matérias seguidas em que crucificava Sanders ao longo de 16 horas; ou quando publicou matéria sobre como Hillary estaria sendo envenenada por agentes secretos putinistas … e até aí só alguns poucos destaques de lista longuíssima.

Mas não quero dar a impressão de que The Washington Post seria caso especial, ou que o editor executivo, Marty Baron seria o único exemplar conhecido de respeitabilidade e boa ética jornalística que todos conhecem.

Todo o resto da mídia-empresa mergulhou de cabeça na histeria das “notícias falsas” [No Brasil também: Folha de S.PauloO Globo já combinando logo com FacebookZero Hora, também combinando com Facebook e a lista é longa: naqueles dias, TODOS OS JORNAIS E REVISTAS da grande mídia-empresa no Brasil SÓ FALARAM de ‘fake news’ (NTs)] e na histeria da “propaganda putinista”, e na histeria da “banalização do fascismo”.

E todos os veículos da mídia-empresa puseram-se em uníssono a bater o bumbo da “pós-verdade” como se o mundo fosse se acabar [Outra vez, todos os veículos da mídia-empresa no Brasil foram na conversa da ‘pós-verdade’ e para lá arrastaram o seu público abestalhado. O Globo juntou logo tudo: muito “fake news” num mix com muita “pós-verdade” (NTs)].

Mas foi movimento planetário: The GuardianThe New York Times, et al., NPR, todas as redes de TV, todo o coro da grande mídia-empresa comercial ladrando a mesma conversa em perfeita sincronia. Afinal: que negócio é esse?! O que está realmente acontecendo?

Já sugeri nesse mesmo Counterpunch em artigo anterior, que o que estamos enfrentando é a patologização (ou a “anormalização”) do dissenso (antônimo de “consenso”) no campo político. Quero dizer: estamos enfrentando a estigmatização sistemática de todas e quaisquer formas de discrepância em relação à realidade que o consenso neoliberal tenha decidido que seja… a única realidade real.

Diferenças políticas tradicionais entre “esquerda” e “direita” estão sumindo, substituídas por imponderáveis distinções entre “normal” e “anormal”, “verdadeiro” e “falso”, “justo” e “injusto” e “real” e “falso”. São diferenças que não se prestam a nenhuma discussão. São enunciadas – e desde que sejam enunciadas passam a valer como verdade única – como verdades axiomáticas, como fatos do mundo natural que nenhuma pessoa normal jamais sonharia com contradizer.

Em vez de filosofias políticas em competição, a intelligentsia neoliberal impõe escolha mais simples: ou a ideia é “normal” ou a ideia é “anormal”. A natureza da anormalidade varia conforme o que esteja sendo estigmatizado. Hoje é “Corbyn o antissemita”; amanhã, “Sanders o doido racista”, ou “Trump o candidato da Mandchuria”, ou “Fulano o Corrupto” ou “Ciclano o analfabeto” ou qualquer merda.

Que as calúnias nelas mesmas sejam indiscriminadas (e em vários casos totalmente ridículas) prova a efetividade da estratégia mais ampla, que implica anormalizar [‘tornar anormal’] o alvo e qualquer coisa que o/a caluniado/a represente. Não importa que, para isso, alguém seja declarado racista – como Sanders, nas primárias; ou antissemita, como disseram de Corbyn; ou fascista, como dizem todos os dias incansavelmente de Trump, ou repetidores de propaganda russa, como disseram de TruthoutCounterPunchNaked Capitalism e incontáveis outras publicações… Em todos os casos, a mensagem é que, de algum modo, essa gente “não é normal”.

Em que tudo isso seria diferente de todos os serviços sujos que a mídia-empresa sempre fez desde a invenção dos jornais e de colunas e jornalistas especialistas em caluniar e mentir? Pois lhes digo.

Tem a ver principalmente com palavras, especialmente oposições binárias como “real”/”falso” e “normal”/”anormal”, que são oposições, é claro, essencialmente sem sentido algum. O valor dessas palavras que parecem opor-se tanto é puramente tático. Implica dizer que são palavras que nada denotam, cujo significado muda conforme o caso. Por isso são armas que podem ser usadas por um grupo dominante para induzir a mais canina adesão a um consenso sobre a realidade que, de fato, só é consensual para aquele grupo. E são armas usadas para ‘formatar’ a realidade de todos, conforme aquele grupo a pinte. Exatamente como estão sendo usadas hoje.

As oposições binárias de significado-zero com as quais a intelligentsia neoliberal e a mídia-empresa estão suplantando as tradicionais oposições filosóficas, além de estigmatizar uma diversidade de fontes de informação e ideias não conformistas, estão também reestruturando nossa realidade consensuada, fazendo dela um território no qual qualquer pessoa que pense, escreva ou fale fora do padrão demarcado para ela é declarada de algum modo “desviante” ou “extremista” ou qualquer outra modalidade de pária social. Mais uma vez, o tipo ou a natureza do desvio não interessa. O que importa à classe dominante é gravar na testa de seus contestadores não cordatos: “desviante”, “discrepante” [“transviado/a” como se dizia no Brasil, da juventude que nos EUA era então chamada de “Rebel Without a Cause” (1955) e em Portugal foi acusada de padecer de “Fúria de Viver” (NTs)].

De fato, o que realmente interessa alcançar é o oposto de todo desvio, discrepância ou transviamento. E esse oposto a qualquer desvio, discrepância e transviamento é afinal a “normalidade” fabricada. Assim a realidade consensuada em bloco é fabricada… e é assim que o processo de fabricação da realidade é ocultado. Desculpem-me por ficar assim tão Baudrillardiano, mas o negócio funciona exatamente desse modo.

A atual obsessão da mídia-empresa com as tais “notícias falsas” aí está para esconder o fato de que não há “notícias verdadeiras” e, ao mesmo tempo, a mídia-empresa já produz mais e mais simulacros de notícias que são vendidas como verdadeiras… ‘porque’ não são falsas (se são simulacros de notícias que nada têm a ver com a realidade objetiva… não se pode dizer que sejam nem verdadeiras nem falsas…)

Toda essa operação de criar ‘realidades’ é possível por causa da oposição lógica binária: se existem as tais “notícias falsas” [e ‘é claro’ que elas existem, ‘posto que’ os jornais só falam delas]… então, ipso facto, existem “notícias reais”.

Assim também, a repetição incansável de que Trump “não é normal” e portanto “nada normalizará” oculta o fato de que não há “normalidade” e, simultaneamente, manufatura uma “normalidade”… que sempre, sempre, sempre é só simulacro.

Assim também estigmatizar Trump como um Hitler ou Mussolini de nossos dias, ou como qualquer outro tipo de ditador fascista oculta o fato de que os EUA já é virtualmente país de partido único, com a propriedade dos veículos de mídia fortemente concentrada, ocupado por uma força policial militarizada onipresente, pela imposição arbitrária da lei, pela manutenção de estado de guerra praticamente  ininterrupto e muitos outros traços que definem os sistemas autoritários de governo. Ao mesmo tempo, essa projeção do “fascismo” conjura, ou manufatura/fabrica seu oposto complementar, chamado “democracia”, mas que nunca passa de simulacro de democracia.

Esse simulacro neoliberal de democracia, de normalidade e de realidade é em que a mídia-empresa e toda a intelligentsia neoliberal trabalham hoje desesperadamente para promover. Toda a imensa confusão e agitação que se criou em torno da eleição nos EUA em 2016 foi um dos pontos altos da operação neoliberal para ‘dar vida’ a uma democracia inexistente. Mas só daria certo se Trump fosse derrotado.

Trump devia converter-se em mais um fantoche-coringa hitleriano, do qual os neoliberais e sua potente democracia teriam salvo os norte-americanos. Mas então… o homem é eleito!

O problema para as classes neoliberais governantes, para a mídia-empresa que lhes é complementar e para liberais em geral, que apostaram até as cuecas no truque do “Trump é Hitler”, é que agora estão condenados a repetir seus ‘diagnósticos’ e ‘análises’, o que vai soando cada vez mais esquisito, porque Trump afinal não é nenhum Hitler. Não passa de mais um Republicano plutocrata, com zero de experiência de governo e com alguns doidos varridos conhecidos e diplomados na equipe. Com certeza Trump quererá ajudar seus “inimigos” neoliberais; para isso servem ocasionais tuítos racistas ou misóginos; e também terá de manter suas credenciais junto aos “trabalhadores brancos”, pelo menos enquanto prossegue a “Guerra contra o Islã”.

Em todos os casos, todos temos de continuar a nos preparar para eventos graves de patologização do dissenso ao longo dos próximos quatro (talvez oito) anos. E não falo de Trump e seus rapazes, embora, sim, com certeza, também se dedicarão a patologizar muitos dissensos. Falo de nossos amigos na mídia-empresa, gente como Marty Baron e sua máquina de difamação, e dos Guardiães da Realidade no The New York Times, no Guardian, e em outros “jornais de escol”.

WNYC já começou com vinhetas diárias de “decadência rumo ao fascismo”. E, claro, a esquerda neoliberal – Mother JonesThe Nation, et al., e The New York Review of Books, ao que parece (simplesmente não conseguem livrar-se daquela conversa deles, de Hitleres) – monitorará cada pensamento da esquerda, para garantir que o fascismo não acabe normalizado, porque Deus tenha piedade de nós, se acontecer…

Quem sabe como acabarão os EUA? Torturando o próprio povo? Outros povos? Atacando países que não representam qualquer tipo de ameaça? Mantendo prisioneiros em campos de concentração por tempo indefinido? Assassinando qualquer um/uma que o/a presidente/a decida que é “terrorista” ou “combatente inimigo”, com a aprovação calada da maioria dos norte-americanos? Vigiando todos os telefonemas, e-mails, tuítos e todos os hábitos de leitura e de pesquisas na rede de todos os cidadãos?

Imaginem em que distopia estaremos vivendo… se coisas assim vierem a ser declaradas “normais”.

*Há aí um eco/referência a Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media (1988), livro escrito por Edward S. Herman e Noam Chomsky, no qual analisam a mídia como negócio. O título deriva da frase “the manufacture of consent” [a fabricação do consenso] do ensaísta Walter Lippmann (1889–1974), escritor do livro Public Opinion (1922). Em 1992 foi produzido um documentário “Consenso Fabricado” (orig. [ing.] “Manufacturing Consent: Noam Chomsky and the Media“), sobre a vida e obra de Noam Chomsky. Centrado nas análises mais polêmicas e lúcidas de Chomsky, o documentário discute o papel contemporâneo dos Meios de Comunicação Social na fabricação do consenso nas sociedades de massas, e comenta a possibilidade de resistir contra essa influência. Assiste-se ao documentário aquiNão parece haver tradução de Manufacturing ao português do Brasil. [NTs, com informações de Wikipedia. Correções e comentários são bem-vindos].

Tradução do Coletivo Vila Vudu.

Fonte: http://www.counterpunch.org/

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