No caminho da flexibilização das aulas tem um cisco

Nosso setor público se coloca de joelhos perante empresa privada norte-americana

Por *José Domingues de Godoi (foto interior).

Embora a ampla maioria das Instituições Federais de Ensino Superior tenham rejeitado a possibilidade de utilizar práticas pedagógicas remotas, algumas continuam tentando empurrar, como fato consumado, o que denominaram de “flexibilização das aulas presenciais” para se esconderem e não enfrentarem as polêmicas, o mercantilismo, os interesses escusos e os desgastes das metodologias da Educação à Distância (EaD); com o agravante de que os cursos afetados não foram pensados, nem planejados para serem ministrados à distância.

Como bem ressalta a nota divulgada pelo ANDES-SN , “a modalidade de ensino a distância não se configura em uma simples gravação em vídeo ou conversão em texto daquilo que seria trabalhado presencialmente, de modo que, sem a capacitação específica do(a) docente, é possível que a simples determinação de conversão em ensino a distância seja danosa ao ambiente de aprendizado.

Ainda nesse ponto, merece destaque as possibilidades de controle de conteúdo e cerceamento da liberdade de ensinar docente, mediante o uso indevido dos vídeos-aulas. Se em sala de aula o(a)s docentes já estão subordinados a um conjunto de ações do(a)s apoiadore(a)s dos projetos Escola sem Partido, imaginem o que pode ser feito com aulas gravadas e que vão cair no domínio público?”

Como já explicitei em artigo anterior “os riscos envolvidos não são poucos e, as possíveis consequências para a educação pública enormes em todos os aspectos, sejam didáticos, pedagógicos, econômicos, institucionais e profissionais. O lucro ficará com os de sempre.”

Por esse motivo, no final de março, capitaneados pela UNESCO (3), foi lançada a Coalizão Global de Educação com “os objetivos de propulsionar, no curto prazo, a utilização de tecnologias de aprendizagem remota ( para esconder a EaD) e, no longo prazo, consolidar o uso de tecnologias de educação nos sistemas regulares de ensino”.

A coalizão envolve além da UNESCO, o Banco Mundial, OCDE,ONU,OMS,UNICEF,OIT, grupos empresariais (Microsoft, Google, Facebook, Zoom, Moodle, Huawei, Tony Blair Institute for Global Change, Fundação Telefônica, GSMA, Weidong, KPMG, dentre outros) e organizações filantrópicas, sem fins lucrativos, como Khan Academy, Dubai Cares, Profuturo e Sesame Street.

Nesse cenário de selvageria capitalista global, no meio de uma grave pandemia, mais um sanguessuga divulgado pelo Sindct-Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial. O Sindct publicou uma grave denúncia feita, no final de maio de 2020, pela Associação Brasileira de Profissionais Autônomos de Startups e de Desenvolvimento de Tecnologias – ABStartups. A denúncia é gravíssima e afeta a educação, a ciência e a tecnologia brasileira.

Diz a nota da ABStartups:

“Neste 27 de maio de 2020, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) anunciou conjuntamente com a empresa norte-americana CISCO, sem licitação, sem chamamento público, sem audiência pública e sem transparência, um acordo entre as duas partes, para que a empresa CISCO “acelere a transformação digital brasileira”.

O evento de lançamento contaria com a presença do presidente da República, que desistiu de participar na última hora, e contou com a presença do ministro do MCTIC, astronauta Marcos Pontes.

O presidente da CISCO (foto de capa), durante sua apresentação do acordo, pedia em inglês que as lâminas de power point fossem sendo trocadas, numa clara demonstração de que a apresentação era coordenada dos Estados Unidos.

Em seguida, o presidente da CISCO deu uma coletiva de imprensa fechada, quando deu detalhes do acordo e onde se recusou a detalhar investimentos que poderiam incriminar o acordo.

Muito embora se tenha solicitado os termos desse acordo, até o momento o MCTIC e a CISCO não os apresentaram, num total falta de transparência sobre um ato que afetará a soberania nacional.

Até a RNP (rede utilizada pelas universidades) faz parte de referido acordo. (grifo meu)

O presidente da CISCO disse que “em troca” dos “excelentes” investimentos que farão, o MCTIC cederá funcionários, cederá informações e concordará com os termos da CISCO.

Ou seja, o nosso setor público se coloca de joelhos perante uma empresa privada norte-americana, que coordenará TODOS os dados e informações de nossa sociedade.

Isso é gravíssimo! Estão aproveitando a pandemia para “passar a boiada”, cuja tentativa vem sendo feita há alguns anos e recusada por todos os ex ministros, tendo em vista o escárnio que é.

Uma ação sem precedentes na história, cujos efeitos serão sentidos pela nação no futuro próximo.

Se a CISCO tem a prerrogativa de, sem licitação, utilizar-se de nossos dados e informações para implantar em todo o Brasil suas tecnologias, inclusive o 5G, ela será soberana no controle de nossa sociedade.

O ridículo chegou ao ponto de o presidente da CISCO entregar um chip 5G para o ministro, dizendo que aquele chip representava a porta de entrada da CISCO no 5G brasileiro, algo que nem regulamentado ainda foi.

Um escândalo sem precedentes!

Pedimos ao Congresso Nacional, ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público Federal que ajam imediatamente, freando esta loucura e nos ajudem a responder as seguintes perguntas:

  1. a) Quais os termos desse acordo?

  1. b) Outras empresas internacionais e nacionais foram chamadas para também apresentarem suas propostas?

  1. c) Que tipos de dados e informações da nação brasileira serão disponibilizados para a CISCO?

  1. d) O Governo Brasileiro terá também acesso a esses dados? De que forma?

  1. e) Os sistemas que a CISCO implantará serão abertos e interoperáveis, permitindo que a indústria brasileira desenvolva soluções tecnológicas e elas possam ser aplicadas em todo o País?

  1. f) Quando algum brasileiro desenvolver uma solução, ele terá que submeter a aprovação para CISCO para que tais soluções desenvolvidas “conversem/se conectem” com as soluções CISCO?

  1. g) Como fica a participação de outras empresas de tecnologia da informação e comunicação que investem no Brasil, como as Europeias e Asiáticas?

  1. h) Como será a participação de empresas nacionais que desenvolveram tecnologias abertas e querem participar do mercado Brasileiro e que não seguem o padrão da plataforma da CISCO?

  1. i) Quantos e quais funcionários públicos o ministério vai disponibilizar, às custas dos impostos brasileiros, para a CISCO?

  1. j) As Universidades brasileiras foram informadas desse acordo? Estão de acordo com ele? (grifo meu)

São perguntas que o Governo Brasileiro e a CISCO precisam responder imediatamente.

De outra forma, em breve teremos os sistemas da CISCO implantados em todo o País, obrigando os prefeitos e governadores a comprar soluções CISCO, a preços aviltantes, bem como teremos todo o nosso ambiente de startups brasileiras indo à bancarrota.

É preciso que os órgãos de controle atuem imediatamente, sem pestanejar, garantindo a aplicação da Lei e da Soberania Nacional!”

A denúncia já produziu pelo menos duas reações oficiais, uma do Senador Randolph Rodrigues (Rede/AP), que, em 29/05/2020, protocolou um requerimento junto ao Ministério Público Federal para tomada de providências cabíveis para a defesa dos interesses da sociedade brasileira.

E outra, em 01/06/2020 (REQUERIMENTO DE INFORMAÇÃO N° 556/2020), encabeçada pela Deputada Federal Margarida Salomão (ex-reitora da UFJF), onde requer informações aos Ministros do MCTI e das Relações Exteriores, a respeito do acordo de colaboração assinado em 27 de maio de 2020, entre o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e a empresa Cisco Systems, Inc., sediada nos EUA.

Como tem sido amplamente comentado e divulgado a quase totalidade das universidades públicas não tem acúmulo de discussões sobre a questão porque, salvo raríssimas exceções, os cursos não foram planejados e organizados para serem ministrados na modalidade remoto, nem possuem infraestrutura para tal, especialmente no que se refere aos meios de comunicação e capacitação dos envolvidos.

No meio de uma dramática pandemia aproveitar para “passar a boiada” é uma atitude irresponsável e totalmente desrespeitosa com os interesses da ampla maioria da sociedade brasileira. É colaborar e se comportar como capacho dos descompromissos do Estado com a educação e a ciência desenvolvida nas universidades públicas brasileiras.

Com a devida licença do grande poeta das montanhas de Minas, há uma pedreira nesse caminho, que nesse caso escabroso atravessa a autonomia da educação, da ciência e da tecnologia do país: – no caminho da flexibilização das aulas tem um(a) CISCO; tem um(a) CISCO no caminho da flexibilização das aulas.

Para aqueles que insistem em “passar a boiada”  com o discurso de estarem “preocupados” com a sociedade fica a sugestão de repetirem a iniciativa da UFBA, isto é, realizar um Congresso Universitário com participação aberta de toda a comunidade universitária, dos movimentos sociais e de todos os interessados na defesa e construção de uma ciência pública e de uma universidade pública, autônoma, laica, democrática e gratuita.

*José Domingues de Godoi é professor da Universidade Federal de Mato Grosso/Faculdade de Geociências.

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