No caminho com Bolívar, livres, cada um a seu modo

Por Raquel Moysés*.

Há 20 anos adolescentes argentinos e brasileiros caminham pelas realidades de dois mundos tão próximos, tão distantes, e fazem valer o que disse Simón Bolívar sobre nosso ser latino-americano: “Para nosotros la patria es América, nosotros somos un pequeño género humano”. São meninos e meninas do Colégio de Aplicação da UFSC e da Escuela Superior de Comercio Manuel Belgrano que há duas décadas fazem viver o Acordo de Cooperação Acadêmico Cultural Brasil-Argentina (Projeto Córdoba), que acomuna os dois colégios, a partir do convênio firmado entre a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidad Nacional de Córdoba.

Para celebrar esta maioridade, nesses primeiros dias de outubro, estudantes e seus professores se encontram em Florianópolis, durante uma semana comemorativa que definem em um princípio: “A integração começa por nós”. As atividades, que prosseguem até esta sexta, dia 5, no Colégio de Aplicação, incluem debates, exposição, apresentação de trabalhos de pesquisa de intercambistas argentinos e brasileiros. Há muito que festejar, principalmente, as intensas trocas de duas décadas entre mais de 400 intercambistas, suas famílias e educadores, um patrimônio afetivo e de conhecimentos. Do projeto frutificaram feitos importantes, como a inclusão, desde 1996, do Espanhol, e desde 2003, da disciplina de Estudos Latino-Americanos, no currículo do Colégio de Aplicação da UFSC, primeira iniciativa de ensinar, de forma permanente, conteúdos sobre a vida de ‘Nuestra América’ em uma escola pública brasileira.

O projeto tem a marca do pioneirismo, pois já buscava contribuir para a integração latino-americana, muito além de trocas comerciais, antes mesmo da assinatura do tratado que instituiu o Mercosul. Os professores que coordenam os trabalhos lembram que o acordo se oficializou no ano das ditas “comemorações” pelos 500 anos do descobrimento da América, espaço temporal de uma massiva expropriação das riquezas de Abya Yala (”tierra en plena madurez”), nome original de ‘Nuestra América’. Para assinalar aquele momento histórico de reflexões e protestos, as duas instituições estabeleceram, em 1992, um pacto para avizinhar vidas que pulsam nos dois países, com o intuito de superar desconfianças, divergências, preconceitos, e de gerar novos paradigmas para uma América Latina possível.

Força da juventude

É precisamente a ideia da recuperação de uma identidade comum que tem permitido irmanar estudantes brasileiros e argentinos, que trocam valiosas experiências de vida e estudos nos dois países, além de se envolverem em pesquisas relacionadas a temas como meio ambiente, impactos do turismo de massa, ditadura na América Latina, transporte urbano, hábitos da juventude, movimentos socais. Como dizem os professores, sãos os jovens que fazem e refazem este projeto. “A cada ano as suas experiências recriam a nossa experiência. Seus depoimentos são intensos, provavelmente porque são ímpares. Todos nós estamos de passagem, mas é pela retina do estudante que este projeto de insere nos espaços da cidade, da sala de aula e de casa.”

Foram vários os educadores argentinos e brasileiros que ao longo dos anos trabalharam para que o Córdoba chegasse à maioridade. Atualmente o projeto é coordenado, no Aplicação, por Danusa Meneghello, professora de Geografia; Fabíola Teixeira Ferreira, do Espanhol; Ivan Brognoli, da disciplina de Biologia. Também participa de tudo, desde o início, Rodolfo Pantel, professor de História aposentado mais ativo do que nunca. Na sala que o Córdoba conquistou dentro do colégio, Rodolfo se sente em casa. Fala do projeto como um pai cuidadoso, que sabe de todos os passos do filho, conhece os momentos difíceis que atravessou e reconhece seu crescimento humano.

“É uma atividade coletivamente gratificante e fundamental em termos institucionais, porque fazemos algo diferente em uma escola pública”. Enquanto Rodolfo fala, entra na sala o estudante do terceiro ano do ensino médio, Paulo Remus Gregório, que em 2011 participou do intercâmbio. Após passar dois meses na Escuela Manuel Belgrano, ele diz que mudou bastante sua visão de mundo. “Hoje me sinto mais desprendido. Antes me importava com o modo de vir vestido ao colégio, tinha que ser de calça jeans… Agora venho assim, de agasalho, como estou agora. Perdi aquela visão burguesa…” Em Córdoba, Paulo pode se acercar do movimento estudantil e percebeu o quanto são politizados os estudantes argentinos. “Se eles se manifestam por algum motivo sério, tomam o colégio e nem o diretor entra. São muito solidários uns com os outros. Os formandos cuidam dos pequenos naturalmente”.

Dialogando com Paulo sobre a participação política estudantil no país vizinho, Rodolfo lembra que é comum em colégios públicos argentinos o “paro” (paralisação) com tomada da escola. Isto acontece porque os estudantes quando paralisam não ficam em casa, mas fazem greve de ocupação, com assembleias enormes, em que discutem seriamente os problemas e possíveis saídas. São comuns também “paros” de solidariedade. Isso acontece quando os estudantes param as atividades e se mobilizam por problemas que podem estar acontecendo até mesmo em províncias distantes, onde estudantes enfrentam problemas como sucateamento de escolas e ameaças de privatização do ensino, por exemplo.

O professor lembra que a Escuela Manuel Belgrano, que pertence à Universidad Nacional de Córdoba, tem uma história de resistência e luta que em grande parte justifica seu presente. Nascida em 1938 como uma escola para filhos de operários, viveu de forma trágica o período da ditadura na Argentina. Aqueles anos foram muito difíceis, pois a instituição sofreu as consequências da intervenção na universidade, além da expulsão e perseguição de alunos que até hoje figuram nas listas de desaparecidos.

Daquela escola, 11 meninos que sonhavam vida boa e bonita foram arrancados de sua existência pelos artífices do terror que se instaurou na Argentina com o golpe militar de março de 1976. Essa história triste é contada pela jornalista e militante em direitos humanos, Ana Mariani, que narra, em seu livro “La Vida por Delante, la tragedia de los chicos del Colegio Manuel Belgrano”, o ‘desaparecimento’ de alunos secundaristas daquela escola. Meninos que tiveram a promessa de uma longa vida esfacelada. Nenhum deles chegou a completar a maioridade. A vida lhes foi arrancada pelo regime que assassinou 30 mil pessoas, uma maioria de trabalhadores, artistas e intelectuais esmagados simplesmente por sua condição de “perigosos” militantes politizados. No livro, Ana Mariani conta a tragédia dos 11 secundaristas entregues pela próprio diretor do colégio aos carrascos da ditadura, horror que aconteceu em outras escolas da Argentina, num cenário brutal que ficou conhecido como “la noche de los lápices”, ainda hoje lembrado em manifestações.

Herdeiros da reforma

Mas para entender o espírito deste colégio argentino, com mais de 2700 alunos, é importante também lembrar fatos anteriores à ditadura e que marcaram a história do continente. Pois a Manuel Belgrano é vinculada à instituição em que eclodiu um movimento sem precedentes na história latino-americana e que ficou para a história como “a reforma de Córdoba”. Primeira universidade da Argentina, nascida nos anos 1600, sob a tutela dos jesuítas, e a quarta mais antiga instituição universitária da América, hoje abrigando mais de 110 mil estudantes de 250 cursos de graduação e pós instituição, a Universidad Nacional de Córdoba a partir de 1918 alcançou força inesperada.

Pois foi em junho daquele ano que a juventude universitária de Córdoba, antecipando em meio século o famoso Maio Francês (ou Maio de 68), decidiu “chamar todas as coisas pelo nome que têm”, batendo-se pela reforma universitária num movimento que soprou ventos novos e conquistou adeptos em todo o continente. As reivindicações dos estudantes eram por renovação das estruturas, novas metodologias de estudo e ensino, raciocínio científico diante do dogmatismo, livre expressão do pensamento, compromisso com a realidade social e participação estudantil no governo da universidade. Sustentavam a proposta de reforma, bases programáticas como o co-governo estudantil, autonomia universitária, livre docência, liberdade de cátedra, concursos com júri estudantil, pesquisa como função da universidade, extensão universitária e compromisso com a sociedade.

E é por terem acesso a esse substrato histórico-político, durante o intercâmbio, que se nota uma mudança significativa entre meninos e meninas do Aplicação após o estágio de vivência. Além de estabelecerem laços fortes com outros companheiros e as famílias que os acolhem em Córdoba, os estudantes passam a compreender o que significa ser latino-americano, uma condição geralmente pouco percebida pela juventude brasileira.

Rodolfo Pantel explica que é vital na proposta do Projeto Córdoba o fato de ela se dar entre duas escolas públicas e estar baseada na ideia de reciprocidade: mesmo número de estudantes intercambiados nos dois colégios; famílias hospedeiras que abrigam os recíprocos filhos nas duas cidades; realização de projetos de pesquisa relacionados a temas relevantes nos dois países. Até para levar e trazer os meninos e meninas ao seu país de origem e vice-versa atua-se com reciprocidade. Os professores que acompanham os seus estudantes ao país vizinho trazem os novos visitantes ao seu país de origem.

O projeto nasceu para possibilitar a estudantes um período de vivência nos países vizinhos, experimentando-se o intercâmbio cultural como forma de mobilização e aprendizado. A permanência inicialmente era de dois meses nas escolas e famílias irmãs, mas houve uma fase em que se trabalhou com a ideia de “talleres”/oficinas em que os estudantes conviviam todos juntos, por um período de dez dias, para aprofundarem a discussão de uma temática previamente preparada. Com o passar do tempo, porém, os educadores perceberam que era preciso mais tempo de convivência para buscar a integração, a quebra de preconceitos e a desalienação. Resolveram então retornar para a vivência de dois meses, por entenderem que ela permitia o período de frequência às aulas, o aprendizado das duas línguas e o convívio por dentro das escolas e famílias, para se conhecer mais intimamente o povo irmão.

Também se caminhou na direção de levar os estudantes a aprofundar os estudos, através da realização de trabalhos de pesquisa no período de permanência no outro país. Só assim, como esclarece Rodolfo, atuando em várias frentes de imersão na vida do outro, o intercâmbio poderia colaborar para uma integração real e para estimular uma mudança de mentalidade, ampliando o conhecimento da juventude sobre a realidade latino-americana. Cada estudante é livre para fazer a escolha do tema que deseja pesquisar e conta com a ajuda de professores orientadores nas duas escolas. Alguns deles escolhem temáticas com grau de dificuldade maior, mas acabam conseguindo concluir belos trabalhos, avalia o professor. Já houve pesquisas que versaram sobre temas delicados como a ditadura militar argentina, a guerra das Malvinas e a presença do negro na sociedade argentina, a “guerra da catraca”, como ficaram conhecidas as lutas estudantis por transporte público em Florianópolis.

Mas até chegar o alegre dia da partida para os esperados dois meses nos colégios irmãos, estudantes, educadores e suas famílias têm que trabalhar duro. Muitos alunos até renunciam temporariamente a outras atividades, porque precisam participar de reuniões e preparar a viagem com muito cuidado. Tudo acontece a partir de um pacto de responsabilidade dividida, com a autorização e cooperação dos pais. Algumas situações de inadequação são em geral bem superadas, e, na maioria das vezes, as famílias acabam ganhando “novos filhos”.

“Um dorme na cama do outro na Argentina ou no Brasil, ajuda nas tarefas domésticas da outra família. Houve até o caso de um nosso estudante que ajudava, por prazer, em alguns momentos de tempo livre, a cuidar do pequeno comércio do ‘pai’ de Córdoba, que tinha um “quiosco” no centro da cidade”, conta Rodolfo. “Nunca nenhum dos estudantes se arrependeu de participar, e esta é a maior prova de que o intercâmbio teve um significado profundo na vida de cada um”. Nesses anos todos, houve casos de quem retornou para uma visita aos “pais” argentinos ou para passar dias de férias nos verões brasileiros. Pelo menos um caso de namoro iniciado na Argentina terminou em casamento.

Filhos do Projeto Córdoba

Além da inclusão do Espanhol e dos Estudos Latino-Americanos no currículo do Colégio de Aplicação, o projeto tem dados outros frutos, entre eles a criação de um curso superior de Geografia na Universidadad Nacional de Córdoba, depois de um seminário ministrado na cidade argentina por professores do Aplicação/UFSC. Além disso, o trabalho inspirou projeto de intercâmbio semelhante, que hoje acontece entre o Cefet de Minas Gerais e o Colégio Nacional de Montserrat, também pertencente à universidade cordobense. Outro filho do Córdoba é o Projeto “Che Mané”, que irmana os colégios de Aplicação da UFSC e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O intercâmbio possibilita um breve e intenso período de convivência entre gaúchos e “manezinhos”, atuando de forma concreta contra o preconceito latente e muitas vezes explícito em relação a argentinos e gaúchos.

A história do projeto tem ainda reflexos inesperados como o de atrair estudantes que nem chegaram a ser intercambistas, mas admiram a trajetória do Córdoba a ponto de querer trabalhar dentro dele. Thiago Bilck, estudante de Geografia na UFSC e bolsista do projeto nos últimos seis meses, confessa que é suspeito para falar do assunto: “É que estive a vida toda aqui no campus da UFSC.” Ele é filho de uma trabalhadora da universidade e começou no NDI (Núcleo de Desenvolvimento Infantil da UFSC), depois foi para o Aplicação e hoje está na universidade. “Quando surgiu a oportunidade de uma bolsa de estudos, o primeiro lugar em que pensei trabalhar foi no Projeto Córdoba, com a Danusa e o Rodolfo, que foram professores muito importantes para mim, pela sabedoria e pela visão crítica que manifestam.”

Thiago não chegou a participar do Córdoba como aluno do Aplicação, mas na UFSC teve uma experiência de vivência latino-americana em outro projeto, tendo viajado para Montevideo. “Por isso entendo a importância deste projeto, que leva estudantes a conhecerem pessoas que se parecem tanto com a gente, mas que às vezes parecem tão distantes de nós. Além de fazer amigos, aprendemos a olhar com outros olhos a nossa realidade latino-americana”.

Um dos segredos para o Projeto Córdoba ter chegado à maioridade, deixando tantas ressonâncias ao longo da estrada, é que ele foi transformado em atividade permanente do Colégio de Aplicação. Mesmo assim, o tempo todo, os envolvidos têm que se empenhar para manter o projeto vivo e reconhecido pelas instituições universitárias a que os colégios são ligados, pois são elas que renovam a cada três anos o acordo de cooperação.

São iniciativas como esta que, no seu aparente pequeno fazer, trazem insuspeitas esperanças e nutrem o sonho de unificação de Simón Bolívar, que ainda não se cumpriu, mas permanece vivo, como um farol, a indicar um caminho a “nosotros” latino-americanos: “Nuestras repúblicas se ligarán de tal modo que no parezcan en calidad de naciones sino de hermanas, unidas por todos los vínculos que nos han estrechado en los siglos pasados, con la diferencia de que entonces obedecían a una sola tiranía, y ahora vamos a abrazar una misma libertad con leyes diferentes y aun gobiernos diversos; pues cada pueblo será libre a su modo, y disfrutará de su soberanía, según la voluntad de su conciencia”.

 

Longa vida ao Projeto Córdoba!

* jornalista.

Fonte: http://www.iela.ufsc.br/

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