‘Nego Xepa’, conto inédito de Wesley Barbosa

Wesley Barbosa

Aquela noite Nego Xepa havia bebido até o ultimo tostão do seu salário  no bar da esquina e pagado cerveja para as mulheres que o rodeavam, enquanto ele tinha dinheiro dentro da carteira. Todos haviam se aproveitado da bebedeira dele: os que se diziam amigos, em torno da mesa de sinuca, o copeiro devolvendo-lhe  o troco a menos e até mesmo um morador de rua que passou pedindo dinheiro. Nego Xepa ficava mão aberta e se sentia o rei do pedaço todas as vezes que bebia muito.

No entanto, em um lapso de sanidade disse ao dono do bar:

– Eu tô bêbado.

– Cala a boca, Nego bosta!

– Traíra!

– Você sai de lá da sua casa pra arranjar briga aqui?

– Foda-se!

O Chepa saiu trançando as pernas rumo a sua casa. Lá o esperavam esposa e filhos. Em seu íntimo ele pensava: “Gastei todo dinheiro!”; tropeçou em uma pedra. Levantou-se rapidamente olhando para os lados. Como as ruas estavam vazias, decidiu parar e mijar na esquina. Um carro passou buzinando. Ele pôde escutar: “Tem banheiro não, ô mijão!” Resmungou algo e sacudiu o pau enojado de si mesmo.

Marília deixara a luz da cozinha do barraco acesa. Ela sabia que, quando o marido demorava a chegar, é que ele havia passado dos limites, em algum bar ali por perto. “Desgraçado! Tomara que não tenha gastado todo o dinheiro.” Pensava ela.

De lá de fora ouve baterem na porta. “É o Xepa!” ela diz em voz alta. As crianças dormem tranquilamente e os vizinhos estão todos com as luzes de suas casas apagadas.

– Quem é?

– Sou eu mulher!

– Já tá bêbado, Xepa?

– Abre essa porta!

Marília tem medo. Pois sabe que o Nego Xepa fica violento quando bebe. Torna-se implacável e não vê nada a sua frente. Outro dia ela viu na televisão que um homem havia enfiado a faca na barriga de sua mulher por nada. Estava com medo. A santinha em cima da geladeira parece estar de testemunha.

Mas quem iria cuidar de seus dois filhinhos pequenos, se algo acontecesse com ela e o Nego Xepa fosse parar na cadeia? A pergunta rodopiava dentro de sua cabeça como uma roleta de jogo de azar.

É certo que havia passado por aquilo inúmeras vezes, mas estava cansada de ser feita de saco de pancadas. Dessa vez, como ela havia dito na noite anterior, ele dorme do lado de fora com os cachorros da rua.

No entanto, quando não bebia, o Nego Xepa era um homem bom: levava Marília para passear, dava-lhe presentinhos e cuidava bem das crianças. Transformava-se em outro ao virar o primeiro copo: mijava nas calças, queria meter nela a força e um dia até levantou a mão para o filho menor.

– Abre a porta Marília! – ele gritava.

Um vizinho colocou a cabeça para fora da janela e se pôs a observar.

– O que tá olhando? – disse Xepa com voz pastosa. O homem apagou a luz do quarto, deixando a janela entreaberta.

– Todo fim de mês é a mesma história – disse Marília – você não toma juízo nunca.

– Eu não tô bêbado, abre essa porta agora!

Nego Xepa bate com força. Marília olha para o filho menor que boceja de sono.

– Vai dormir menino!

– Eu te tiro de lá do interior pra você fazer isso comigo? – grita o homem lá de fora.

– Volta pro bar, não é lá que você estava?

Nego Xepa  cerra os punhos e soca a porta com fúria. A mulher grita. Ninguém irá ajudá-la. Os vizinhos gostam de briga. Sua única amiga, a Maria Madalena, mora na rua de cima e, mesmo que estivesse ao lado, o que poderia fazer com um homem feito o Nego Chepa, que, embora gostasse de beber cachaça, trabalhava com entulho e comia mais de uma marmita diária, que a esposa preparava para ele?

O Nego Xepa era forte como um touro. Não havia quem entrasse em seu caminho.

– Vagabunda! – grita ele – Eu vou arrombar.

– Xepa! – suplica a mulher – pensa nos meninos.

– Eu só quero entrar na minha casa e descansar em paz.

– Você está completamente bêbado, vai acordar as crianças e bater em mim como sempre faz.

Marília sabe que não adiantará pedir que ele vá embora. A porta de madeira não aguentará por muito tempo. E, se ele ainda não arrombou, foi por esperança de ela ceder. Mais uma vez ela olha para a santinha, como a pedir por uma resposta. A santinha não diz nada. Ela sabe que nunca diria, embora estivesse acompanhada por orixás e Deus ainda lhe desse força para suportar as escoriações do homem, todos os dias.

Decidiu segurar a lágrima que ameaçava escorrer por seu rosto.

Xepa grita lá de fora:

– Vai se arrepender, Marília! Escuta o que eu tô te falando: você vai se arrepender se eu entrar aí dentro… Ou eu não me chamo Nego Xepa!

Marília abre uma das portas do armarinho todo escangalhado e de lá retira uma faca. Ela sabe como manusear a peixeira e cortar a garganta de uma galinha, para fazer galinhada quando o Xepa lhe pedia.

Amolar a faca ela havia amolado aquela tarde esperando que ele trouxesse um frango para o almoço do dia seguinte. Lembrou-se que no interior viu um homem matar outro sujeito a facada. Então sabia os pontos certos se o pior acontecesse.

Nego Xepa bem que poderia ter pensado nela e nas crianças e  cuidado deles com desvelo. Então a noite não teria o cheiro pustulento da morte, nem os vizinhos ficariam com o copo grudado no tabique da casa ouvindo-os discutir.

“Vagabunda!” gritou o homem mais uma vez arrombando a porta com toda a força. E, como que tirando Marília de suas reflexões, foi o tempo de ela acertar uma, duas, três, quatro facadas bem no peito do marido.

Wesley Barbosa nasceu em 1990, é morador de Itapecerica da Serra, divisa com São Paulo. Começou a escrever aos nove anos de idade, acumulando contos e poesias, publicou em 2016 seu livro de estreia “O diabo na mesa dos fundos,” pelo Selo Povo editora, fundado pelo escritor Ferréz em 2009. O autor, de 28 anos, já está trabalhando em uma nova coletânea de contos, da qual ira figurar o conto acima. Para adquirir o livro clique aqui

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