“Não temos a real dimensão do que está acontecendo”, alerta infectologista

Com número insuficiente de testes, subnotificação esconde o número real de infectados pelo coronavírus no País

Hospital de Campanha Construído no Estádio do Pacaembu para atender os pacientes de coronavírus (Foto: Governo do Estado de São Paulo)

Por. Alexandre Putti

No dia 26 de março o Brasil completou 1 mês desde que o primeiro caso de coronavírus foi confirmado no País. Desde então, o número de pessoas infectadas pela covid-19 não parou de crescer. No último levantamento do ministério da Saúde, divulgado na segunda-feira 30, o Brasil tinha 4.579 pessoas infectadas e 159 mortes.

Em alguns países da Europa, como Itália e Espanha, que são os mais atingidos do mundo, os números já ultrapassam a casa dos 100 mil infectados em cada um deles, obrigando a tomada de medidas drásticas como o isolamento social total e o fechamento das fronteiras.

A análise fria dos números conclui que o Brasil segue a mesma linha de crescimento desses dois países um mês após o registro da primeira contaminação. Especialistas ouvidos por CartaCapital, no entanto, recomendam cautela ao fazer  comparações.

Isso porque essa comparação leva apenas em conta os casos oficialmente confirmados, ignorando a subnotificação que ocorre em todos os países, em menor ou maior grau. E esse tem sido o maior problema do Brasil.

O próprio ministério da Saúde reconheceu que há uma subnotificação importante de casos graves no sistema, mas afirmou que a responsabilidade é dos hospitais e unidades de saúde que recebem esses pacientes.

Em São Paulo, estado que é o epicentro da epidemia no Brasil, o governo estadual informou que há 12 mil testes de coronavírus aguardando resultados. São 500 testes de pacientes graves, internados, e o restante de pacientes com sintomas leves.

Para o médico infectologista da USP Luiz D’Elia Zanella, quando o governo disponibilizar novos testes, o Brasil poderá ter um grande aumento de casos, deixando a situação muito pior do que já está. “Devido a esse entrave, não temos a real dimensão numérica do que está acontecendo”, explica o médico.

Países que estão conseguindo barrar o aumento da curva de contaminação, como Alemanha e Coreia do Sul, estão fazendo testes em massa na população, como foi indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Um levantamento do projeto Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, demonstrou que os países que mais testam pacientes para coronavírus são os que mais têm infectados. No Brasil, a estatística mostra apenas 13,7 testes por milhão de habitantes em meados de março.

Essa medição em massa permite isolar as pessoas contaminadas mas que não apresentam sintomas para que elas deixem de transmitir o vírus. Além do Brasil não estar fazendo os testes em massa, o presidente Jair Bolsonaro defende que o País adote uma medida de quarentena vertical, na qual apenas os idosos e quem faz parte do grupo de risco fiquem isolados.

O presidente justifica a medida relativizando o vírus – o qual chamou de “gripezinha” por diversas vezes -, e utilizando informações falsas para dizer que governadores estão inflando os dados. Ao sustentar a queixa sobre os gestores estaduais, o chefe do Palácio do Planalto tratou como verdadeiro o relato sobre um borracheiro que teria morrido pelo estouro de um pneu e um atestado teria registrado a covid-19 como causa do óbito.

Zanella é contra a quarentena vertical, pois, segundo ele, a proposta do presidente não impede que as pessoas continuem transmitindo o vírus. “É um verdadeiro absurdo. Uma irresponsabilidade não condizente com um chefe de Estado. Suas palavras, diminuindo a gravidade da doença, põem a população em risco. Ele deveria já ter se rendido às indicações do ministro da Saúde”, enfatiza o médico.

Confira a entrevista completa:

CartaCapital: Em 30 dias, o Brasil teve um aumento muito parecido com a Itália e Espanha nos casos de coronavírus. Você acha que a tendência é ficarmos igual?

Luiz D’Elia Zanella: É a tendência e estamos com casos subestimados em São Paulo. O Instituto Adolfo Lutz está com cerca de 12 mil exames em atraso. Eu já não recebo atualização dos exames faz mais de 10 dias. Então imagine você que teremos um grande aumento de casos confirmados em breve.

Outro ponto a ser considerado é que muitos exames coletados têm vindo negativo para covid-19 e quando recoletados posteriormente com tempo mais tardio de sintomas, esses exames estão positivando. Então teremos muitos casos com diagnóstico negativo no primeiro exame, com tomografia de tórax e sinais ou sintomas altamente sugestivos de covid-19, que continuarão sendo considerados suspeitos e não confirmados, a não ser que tenham esses exames repetidos.

CC: Quando atingiremos o ápice da infecção?

LDZ: Acredito que já estamos no início do ápice, porém com casos subnotificados. A piora está prevista para as próximas duas a três semanas.

CC: O presidente Jair Bolsonaro defende a quarentena vertical. Qual a sua opinião sobre isso?

LDZ: É um verdadeiro absurdo. Uma irresponsabilidade não condizente com um chefe de Estado. Suas palavras, diminuindo a gravidade da doença, põem a população em risco. Ele deveria já ter se rendido às indicações do ministro da Saúde, mas negar a ciência é característica marcante do governo Bolsonaro.

CC: O que você acha que vai acontecer com as favelas do Brasil, que têm muita aglomeração?

LDZ: O vírus já chegou. Vai piorar. A aglomeração ajuda. Até agora tivemos parte da população de classe média-alta sendo acometida pela doença. Enfartamento de serviços particulares principalmente.

Agora, a população das favelas, que depende exclusivamente do SUS, também será atingida pela doença e, caso não sejam respeitadas as medidas de contenção, o sistema público de saúde estará colapsado. Na verdade eu penso que mesmo com essas medidas é possível o colapso ocorrer num futuro próximo.

Outro ponto é como a população das favelas será encarada pelo Estado diante dessa epidemia. Que medidas pós-epidemia serão estimuladas para a população de baixa renda e da favela ser reinserida no mercado em meio à crise econômica decorrente da pandemia, já que a maioria das pessoas têm sua renda oriunda do trabalho informal.

CC: Em quanto tempo poderemos voltar a viver normalmente?

LDZ: Não sei dizer ao certo, mas a tendência é que a epidemia se prolongue e que ela exista pelo menos até maio e junho. Como será essa dinâmica ainda não consigo dizer.

CC: Há um estudo que prevê 1 milhão de mortes no Brasil. Acha possível? O SUS vai dar conta?

LDZ: Esse estudo londrino é excelente. Esse número de mais de 1 milhão é mostrado como sendo o pior cenário da epidemia (no caso de medidas de contenção não serem tomadas). Mesmo na melhor das hipóteses, com cerca de 44 mil óbitos, o SUS enfartaria.

Nosso sistema público está há anos sucateado. Mas nessa hora vemos a importância de investimento na saúde pública. Essa epidemia escancarou o que temos de melhor (o SUS) e o que temos de pior (seu subfinanciamento).

CC: Você vê um cenário de subnotificação no País? Os casos podem estar além do que informa o ministério da Saúde?

LDZ: A subnotificação existe e é um gargalo importante a ser superado. Devido a esse entrave, não temos a real dimensão numérica do que está acontecendo. Temos sentido diariamente nos serviços hospitalares, onde chegam mais e mais pacientes com sintomas suspeitos de coronavírus, mas as confirmações não aumentam na mesma proporção.

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