Não foi só pela PEC

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Ocupantes da Universidade Federal do Sul da Bahia. Foto: Vicente Izidro

Por Rafael Siqueira de Guimarães, Ilhéus, para Desacato.info.

Não foi só pela PEC.

Nem sei se é verdade ou foi uma história inventada. Não importa. O que importa é que é perfeitamente cabível que tenha acontecido. O fato é que me deparei com a hashtag #perderamobolão entre comentários e publicações de tempos finais de ocupação no Facebook. Soube, então, que havia uma aposta (vulgo “bolão”), que teria sido realizada entre docentes e que consistia em apostar qual a quantidade de filhos haveriam de ser fruto do período da oCUpação.

Repito, não sei se é verdade. De todo modo, é importante falar sobre isso. Falar sobre os corpos, os corpos que vi na ocupação. À frente do movimento, muitas mulheres negras, lésbicas e bissexuais e homens negros, gays e bissexuais. No meio do processo, uma pessoa passou a identificar-se como transgênero abertamente. Foram mais de cinquenta dias de ocupação, de aprendizado coletivo, de partilha de sensibilidades.

Por que as pessoas estudantes mais vulneráveis da Universidade estavam à frente do movimento? Não se trata, em minha opinião, do óbvio ululante que vem sendo repetido por tanta gente: houve um momento de avanços que agora as pessoas mais vulneráveis sentiriam o seu peso, por isso estariam à frente. É óbvio que houve avanço (e ficou provado quão frágil era), mas é preciso salientar que existe o genocídio das pessoas negras, das pessoas LGBTIQA, dos corpos dissidentes, numa sociedade que teve 354 anos de escravidão institucionalizada, que mata a juventude negra e é responsável pelo primeiro lugar no ranking de mortes de pessoas trans*. Uma sociedade que ainda não conseguiu criminalizar a homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia, na qual racismo é chamado de injúria racial, em que pessoas que não correspondem aos padrões de corpos magros sofrem diversos tipos de violência.

Pode não ser realidade a estória da aposta, mas a Universidade é parte desta exclusão. Quando passa por nossa cabeça que, distante de nossos olhos, estudantes pobres e periféricos podem fazer aquilo que não deveriam (SEXO?), estamos contribuindo para a disciplinarização dos corpos. Estudantes em fileiras, sentados em carteiras, assistindo às aulas. E, óbvio, seriam estudantes cishétero, pois dali sairiam apenas… filhos!

Li também o relato de um aluno no Facebook que será difícil voltar às aulas. Entendo perfeitamente, já que nestes dias, os corpos foram vivenciados: dançaram, discutiram política, cozinharam, fizeram esportes, falaram sobre seus corpos. Estes corpos beijaram uma face amarga da nossa sociedade, o espaço institucional. Deram-se conta do quanto as instituições os enclausuram. Estes corpos que são tolhidos da experimentação.

Por isso, entendo que não era somente sobre a PEC ou a MP do Ensino Médio. Nas outras ocupações em que estive, vi o mesmo protagonismo de mulheres, pessoas negras e LGBTIAQ, observei o carinho com a nossa chegada para troca de afetos. Afetos, afagos nem sempre parte do enfileiramento dos nossos corpos docilizados, territorializados nos papeis professor/aluno.

Com as ocupações, o ganho é de visibilidade. Não apenas da visibilidade das escolas, institutos e universidades, mas visibilidade da luta pelas, nas e com as diferenças. Não haverá como passarmos incólumes, apesar de ter também acompanhado, nas redes sociais, um colega professor dizendo que “agora que aguentem as minhas provas”. Vagabundos, vândalos, promíscuos, sem cultura, pobres, viados, travestis, vadias: ainda há muita opressão, e vocês (nós) provaram que censurar não vai adiantar, porque seus (nossos) corpos existem.

É como aquele poema do Eduardo Galeano:

“A Igreja diz:
O corpo é uma culpa.

A ciência diz:
O corpo é uma máquina.

A publicidade diz:
O corpo é um negócio.

O corpo diz:
Eu sou uma festa.”

E eu complemento: O nosso corpo é reXistência!

Do mesmo modo que a PEC significa um esquadrinhamento dos investimentos com educação, cultura, saúde, assistência, agricultura familiar, deslocando discursivamente investimento para gasto e a MP do Ensino Médio deixa marcado o lugar de cada classe social na divisão da força de trabalho na sociedade usando o termo “opção”, a Universidade se reorganiza, depois da ocupação, utilizando todos os artefatos de manutenção do espaço (o enfileiramento geométrico dos objetos, a assepsia, a pintura, a segurança) para apagar que estudantes estiveram ali com suas barracas, com sua comida, com sua festa e com sua voz. Daí que vemos, na foto tirada dias após o processo de desocupação, com a qual termino este texto, a Universidade de outrora: sem corpos e sem possibilidade de corpografias outras.

Ledo engano. Não haverá aposta, não haverá desinfetante, não haverá organização espacial que apague as brechas entreabertas, redobradas, transbordantes e vivas que a juventude nos deixou. A Universidade não será a mesma. As escolas não serão mais as mesmas. Os institutos não são mais os mesmos. Porque suas paredes foram pintadas de cores de vida, uma vida que é menos pote e mais potência, é mais reXistência que vida ordinária, é mais dobra que linha reta.

 Campus Jorge Amado da UFSB.Foto: João F Sebadelhe

Campus Jorge Amado da UFSB.Foto: João F Sebadelhe

Rafael Siqueira de Guimarães é performer, psicólogo, doutor em Sociologia. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

 

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