Não é uma combi, não é um grupo de WhatsApp, são pessoas. Por Carlos Weinman.

Foto Ilustrativa: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Independente do contexto histórico uma pergunta filosófica é apresentada: quem é o humano? Para responder é necessário aprimorar a indagação, já que o protagonista não deve ser colocado externamente, como se fosse alheio, por isso a questão deve ser: quem somos nós? Muitos poderiam dizer que a pergunta é a mesma, todavia existe um engano, na primeira nos colocamos como seres que julgam os outros, por isso fica fácil dizer que a humanidade é egoísta, frágil e mesquinha. Por sua vez, na segunda questão, somos obrigados a pensar a humanidade como parte de nós e ao estabelecer juízos somos classificados ou definidos.

Inaiê e Roberto conversavam sobre essa problemática; estavam distantes, por isso faziam uso do WhatsApp, as tecnologias eram os meios que os aproximavam, a conversa estava no grupo, que tinha um nome peculiar: viajantes da ferrugem dos esperançosos. A combi deixou de ser a referência, o lugar de encontro, entretanto, o nome constituía em uma forma abstrata, muito significativa para os viajantes; ainda que as aventuras, os desafios, as angústias, os sofrimentos e as alegrias foram, em um determinado tempo de suas vidas, socializados em um espaço, no interior de um veículo, o que não quer dizer que o objeto ou espaço físico  seja suficiente, pois  as coisas em si, não são capazes de trazer sentidos e significados. Essa é uma tarefa que os seres humanos costumam fazer espontaneamente, o sentido do pensar começa com a capacidade de dar significado as coisas. Do mesmo modo, a socialização é uma necessidade, por isso os estranhos transformaram o espaço da ferrugem, que era um veículo, em um conceito abstrato, para dizer que naquele lugar poderiam conversar uns com os outros, trazerem as suas aventuras e angústias dos novos percursos, o resultado final foi a transformação de um conceito, que tinha como referência um veículo, para um nome de um grupo do WhatsApp.

Ao refletir sobre a humanidade, os dedos das mãos de Roberto pareciam ser uma extensão de seus pensamentos, não gostava de usar áudio ou vídeo; ele havia se habituado a digitar no aparelho que em outros momentos não despertava tanta a sua atenção, todavia, nas novas circunstâncias,  tornou-se  o meio para se sentir próximo dos amigos. Roberto, ao se dirigir para Inaiê, citou um pensamento de Blaise Pascal:

“Que quimera é, então, o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que objeto de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, verme imbecil; depositário do verdadeiro, cloaca da incerteza e do erro; glória e desejo do universo. Quem resolverá essa confusão?” 

Inaiê – Esse pensador é muito profundo! O ser humano é um ser de muitas faces, por isso, definir a humanidade é o mesmo que buscar no meio das ficções, dos devaneios, das visões algo que seja comum a todos, permanecendo na inquietação que algo sempre escapa pelos sentidos do significar! O ser humano toma para si o juízo de tudo, das coisas, do certo e do errado, somos levados a imbecilidade, a cometer os atos mais atrozes, descemos a condição de vermes, como diz o autor.   

Roberto – Queremos ter consciência e conhecimento de tudo, sobre todas as coisas e até mesmo sobre o universo, passamos a vida investigando, mas no final descobrimos que temos uma experiência muito limitada, que tem como resultado um conhecimento muito superficial sobre quem somos, sobre as nossas existências.

Inaiê – Sobre a definição do ser humano, é interessante a observação feita por  Edgar Morin, pois para conhecer o ser humano, inicialmente temos a necessidade de situá-lo; em outras palavras, existe o imperativo de encontrar suas raízes, sobre isso o autor afirmou que percebemos, em nossos tempos, um enraizamento no cosmo físico e na esfera viva, estamos na natureza e ao mesmo tempo fora dela!  

Roberto- Além disso, Morin diz que o desenvolvimento do humano está ligado nesse universo cósmico a uma condição biológica que possibilita a racionalidade e o delírio, até mesmo a destrutividade.

Inaiê-  Esse autor traz algo que me deixa muito encucada, imagine, ao considerar a parte genética, o humano tem 98% de genes idênticos ao dos chimpanzés e dos gorilas, sendo diferente apenas em 2%, podemos afirmar que essa pequena diferença é que faz o ser humano tão distante dos animais, possibilita habilidades organizadoras e cognitivas, novas formas de vida, psíquicas, espirituais e sociais, trazemos uma vida do espírito, uma consciência.

Roberto – Lembro que Morin afirma que “a humanidade não se reduz, de modo algum, à animalidade, mas sem animalidade não há humanidade”. Eu considero essa frase muito profunda, ainda mais pelo fato de esquecermos constantemente que pertencemos ao cosmos, a natureza, existem condições que dependemos para viver, embora ignoremos.

Inaiê – Sem contar que nos consideramos melhores que todos os demais seres viventes, já que  muitas vezes temos apenas a sede por poder, pela produção como forma de gerar capital, mas que ao longo prazo todos os valores se desvanecem, ficando para traz o rastro da destruição e a nossa condição contraditória de seres conscientes e imbecis, ignorando a necessidade de preservar, o que contradiz com o enraizamento cósmico e com nossa condição biológica.

Roberto – Interessante que as condições biológicas possibilitaram o desenvolvimento do ser humano, ao mesmo tempo as condições sociais, culturais instigaram a forma de ser do humano, construindo uma condição que vai além do biológico e físico, ganha uma esfera da linguagem, da consciência e até mesmo espiritual.

Inaiê – Eu fico admirada ao pensar o desenvolvimento do ser humano, nas práticas funerárias, nas atividades de caça na pré-história, o mito, a magia e a razão se misturavam, a capacidade de aprender com as experiências trouxe muitas inovações, novas formas de ser.

Roberto – Edgar Morin traz outra observação importante, pois os seres humanos modernos acreditavam ter encontrado a racionalidade, por isso aparece o ideal do iluminismo, contudo, as religiões e os mitos sobreviveram com mais intensidade, surgiu o mito do estado nacional, barreiras foram postas e esses humanos passaram inclusive a promover perseguições em nome dessas ideias, ironicamente, como diz o autor, “o mito introduziu-se no pensamento racional no momento em que este pensava tê-lo expulsado”.

Inaiê – Por esse motivo, podemos dizer que o ser humano entra em contradição, dizemos que somos seres racionais e conscientes e, ao mesmo tempo, matamos em nome de nossas crenças.

Roberto – Tem uma outra passagem desse autor que eu considero extraordinária, ele diz mais ou menos assim: “somos tão diferentes, pelo motivo de sermos tão iguais”.

Inaiê – Não entendi!

Roberto – O ser humano tem uma unidade criadora, por esse motivo criamos formas distintas de ser, de expressar, de organizar as coisas, temos uma unidade na diversidade, como diz o autor: “o tesouro da humanidade está na diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está na sua unidade geradora”.

Inaiê – É uma constatação fantástica e emblemática, já que as pessoas não conseguem trabalhar com a diversidade, muitas vezes negam com veemência, até matam, esquecem que o grande pressuposto da identidade está na diversidade, muitas vezes querem conservar valores, por considerar uma pressuposta solidez, em contrapartida, a natureza humana nos aspectos biológicos  e espirituais revelam que não há elementos valorativos sólidos, formas estáticas, o único pressuposto unitário está na capacidade criativa e na diversidade, no movimento e na mudança.

Roberto: Considero coerente o que diz, os grandes assassinos, que dizimaram milhares de pessoas, os piores facínoras, sempre apresentavam um pretensioso   pressuposto como justificativa, cujos alicerces estão no mito de uma verdade única, quem não se enquadrava, passava ser visto como inimigo, alguém que deveria ser eliminado.

Inaiê- Vejo que por detrás da pretensa verdade única, de um mito, existe um conjunto de interesses velados, não manifestados, todo movimento para consolidação de objetivos obscuros envolve muitas estratégias de manipulação, de fazer as pessoas beberem e tomarem como parte de si um conceito que não foi gerado inicialmente por elas, apenas se dão conta muito tempo depois, quando a ruína e o sangue de muitos inocentes passam a jorrar sem razão, simplesmente pelo motivo de terem seguido sem crítica o pensamento, a crença que uma determinada pessoa ou grupo foi capaz de dizer.

Roberto – Faz sentido o que você afirma, na Alemanha nazista, as pessoas seguiam aquela ideologia com naturalidade, como normal, negavam impetuosamente as injustiças do sistema, a morte dos inocentes, chegavam ao ponto de ir para o trabalho e ver pessoas serem mortas simplesmente por considerarem uma verdade, era necessário purificar o país, para torná-lo grande, porém a única grandeza foi o número de vítimas,  que não tiveram a possibilidade de ver seus entes queridos novamente, muitos nos campos de concentração torturados, mortos, filhos que viram seus pais serem assassinados, pais que perderam, na multidão e na imposição bélica, seus filhos, o pior de tudo, depois de muito tempo, as pessoas esquecem e acabam dizendo que não foi tanto assim, que o regime era bom.

Inaiê – A ignorância sobre a história faz com que as tragédias sejam repetidas em nome de uma purificação, dos bons valores e da tradição. Por isso, acredito que a ignorância histórica e a falta do exercício do pensamento correspondem a um campo minado, onde paira aniquilação e a morte do humano, pois esse continua insistindo em negar a diversidade geradora e servindo a muitos interesses questionáveis.

Após a fala de Inaiê, Roberto mencionou que precisava parar de conversar, pois ele estava como motorista da combi, tinham parado para descansar, faltavam alguns quilômetros para chegar próximo de Buenos Aires, capital da Argentina, lá estavam morando seus tios e primos. No entanto, a conversa dos dois, gerou muitas reflexões para todos os membros do grupo dos viajantes da ferrugem dos esperançosos.

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Carlos WeinmanPossui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do Estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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