Não é diferente hoje. Por Viegas Fernandes da Costa

Foto: Albert Camus, autor de A Peste. Reprodução

 

Por Viegas Fernandes da Costa.

Então eles diziam que literatura não se fazia no jornal, aquele papel de embrulhar peixe. Afinal, texto sério nascia no livro ou no discurso proferido desde a tribuna ou do púlpito.

Mas, de repente, tivemos os folhetins de Machado de Assis. Folhetins, assim, dito pejorativamente, diferente de “Romances”. Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas… Folhetins…

Também na ordem hierárquica dos livros, o escritor só se reconhecia quando provasse a disciplina de um romance, e que de preferência se sustentasse em pé sobre a mesa. Poetas, diga-se, eram poetas, lavradores de outra ordem, sonhadores ou afogados em sofrências. Haveria, claro, quem pudesse ostentar os dois títulos: Escritor e Poeta, nesta ordem.

Mas, de repente, tivemos Mário Quintana, que não só ousou poesia, mas as paria impressas nos papeis de embrulhar peixe.

Fernando Sabino, Rubem Braga, aquele doido do Stanislaw…

Literatos fracassados presos aos papeis de embrulhar peixe.

Rachel de Queiróz, esta sim, aos vinte anos surge com seu primeiro romance, “O Quinze”, como que se a cronista e folhetinista não tivesse existido antes e durante.

A lista é longa.

Literatura séria tem que ter o peso de um “Irmãos Karamazov”, melhor ainda se pudermos chamar o literato de filósofo, como outro dia ouvi alguém dizer sobre “A Peste” de Camus: “não é apenas literatura; é filosofia!”.

“Apenas”, percebeu?

Assim como nos Currículos Lattes da praça, este “facebook” da academia, importa mesmo artigo publicado em revista científica que pouca gente lê. Publicação científica o Lattes chama de Revista, e revista com leitores vira “magazine”. Afinal, ciência é para eleitos, assim como a teologia nos tempos pré Concílio Vaticano II.

Magazine e papel de embrulhar peixe são leves demais, perecíveis demais, não servem para o pensamento com peso e densidade.

E assim seguem nossos sábios, habitando desconsolados seus castelos. Não compreendem a ignorância dos parvos, que só têm olhos para youtubers, tiktokers e filosofia de twitter.

“Filosofia de twitter”, percebeu?

Tudo isto, dito assim, sem introdução, porque outro dia cometi o sacrilégio de comentar uma discordância sob uma postagem feita por um amigo no livro de rostos virtual. “Era uma piada, ele disse, porque se eu quisesse escrever a sério, não o faria na rede social”.

A estridulação dos grilos soaram aqui.

Cri… cri… cri…

Como pode este meu amigo, homem sério de óculos e bigode que dá conferências internacionais, escreve em revistas dignas de ostentação com estrelas douradas no Lattes e autor de livro que se sustenta em pé sozinho, estar investindo opiniões em rede social consultada por gente ignara, como este escribazinho aqui que agora vos escreve também em rede social e por isso não merece lá muito crédito? Suas sugestões e reflexões publicadas neste espaço, que sequer tem substância para embrulhar peixe, e por isso na escala de valores do reconhecimento intelectual, está abaixo do jornal, não devem, portanto, ser consideradas como sérias ou dignas de atenção? Por que, então, estamos todos aqui?

Havia muito mais literatura nos classificados de um jornal do que nossos doutos paridores de calhamaços poderiam imaginar! A gente sabe. A gente leu uma penca de gente que fez do suporte vagabundo o veículo para levar as ideias mais elevadas e as palavras mais refinadas à ágora democrática.

E não esqueçamos, as 95 Teses de Lutero foram escritas em um papel afixado na porta de uma igreja. O papel e a porta fora o suporte, mas o valor e a profundidade das ideias estavam expressos na palavra.

Não é diferente hoje.

14/11/2020

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