Não é cuidado, é machismo e racismo

Foto: Dmitri Mikitenko
Foto: Dmitri Mikitenko

Por Viviana Santiago, Palavra de Preta.

Hoje eu quero pensar um pouco naquelas vivências cotidianas nas quais  mulheres são cercadas por aquilo que se entende como “cuidado e proteção”. Revisitando um episódio que testemunhei nesses últimos dias, faço aqui um esforço para entender a realidade por detrás dos cuidados que são destinados às mulheres.

Numa conversa, escuto uma mulher dizer como foram os preparativos para sua primeira viagem a um país da África: Entre as coisas que comentava, me explicou qu colegas de trabalho pediram que fizesse  um pacto: Ela não deveria se envolver com nenhum homem em Guiné Bissau. Antes de viajar teve que prometer que o faria.  Chegando em Bissau, um companheiro estava sempre vigiando seus passos, retomando o acordo: Relembrava que ela não podia se envolver com nenhum daqueles homens.

Eu escutei essa conversa e fiquei naquele estado de espanto, no qual a gente só consegue articular uma ou duas frases sem sentido porque parece que se instaurou um caos na nossa cabeça, mas desde então, não consigo parar de pensar nisso.

Vamos pensar que direitos sexuais são direitos humanos, a decisão de se, quando e com quem vivenciar atividades sexuais é uma decisão e um direito de cada pessoa. Nesse caso, essa mulher tem esse direito, e esse ato que estabelece esse limite no se, quando e com quem,  é profundamente violador desse direito, reitera essa  visão machista de que o corpo e a vida das mulheres não pertencem a elas mesmas, de que o prazer sexual é algo que só pode acontecer dentro de convenções que privilegiam o exercício de uma masculinidade aberta aos prazeres, mas que confina os corpos e vidas das mulheres  a uma existência que consiste em ser objeto do prazer de outro, a convite desse outro. Ou vocês imaginam que esse tipo de acordo seria feito com um homem? Não né?

Eu não sei vocês, mas todas as vezes em que eu ouço que alguém está indo pra Europa, eu escuto suspiros… votos para que se viva alguma daquelas aventuras ao estilo comer-rezar e amar, nesse sentido o que vocês acham que representa esse aviso/determinação para que não se relacione com homens africanos? Vocês conseguem ver todo um estereótipo e subalternização racista que determina que ao contrário de homens europeus, homens africanos não são pessoas para serem sonhadas, relações a serem idealizadas e fantasiadas. Eu não queria, para o bem de minha sanidade mental, me estender aqui nos possíveis argumentos racistas que devem fundamentar esse conselho, penso em todos os estereótipos de uma África adoecida, violenta que devem estar sendo acessados e reproduzidos, e coloco o dedo na ferida provocando: se fosse na Europa diriam isso?

É disso que esse texto trata, colocar o dedo na ferida e desvelar esse machismo e racismo cotidiano, que atravessa relações, as vezes assume a face de cuidado mas eu concretamente inviabilizam a realização de direitos e implicam na reiteração de ideologias de dominação e sua sofisticação a partir do uso em outras práticas.

Outras leituras desse episódio certamente serão possíveis. Eu fico com essas aqui, chamando atenção sobre como essas atitudes pseudo carinhosas e cuidadosas reproduzem e produzem machismo e racismo, Como têm a intenção explicita de cercear o direito de mulheres ao exercício de seus direitos sexuais e como cumprem com a intencionalidade de destituir, desumanizar o povo negro.

Episódios como esse são comuns, precisamos desvelá-los, denunciar o patriarcado racista e estabelecer o enfrentamento ao machismo, ao racismo e a construção do bem viver.

Fonte: Palavra de Preta.

 

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