Na pandemia, deixa morrer. Na Amazônia e no Pantanal, deixa queimar

Misto de incompetência e irresponsabilidade observa as tragédias do país. Rastro do deixa morrer na pandemia e deixa queimar na Amazônia e no Pantanal não será apagado tão cedo

Cenas do governo Bolsonaro, com auxiliares como Ricardo Salles e Eduardo Pazuello. Arte RBA | Fotos de Mario Friedlander, Amazônia Real e Reprodução
Por Paulo Donizetti de Souza.

O Brasil já chega nesta sexta-feira (25) às marcas de 140 mil mortes e 4,7 milhões de casos de covid-19. A chegada da pandemia do novo coronavírus trouxe recomendações das autoridades sanitárias e científicas. Seria essencial os governos organizarem a população e suas atividades econômicas para promover o isolamento social. O objetivo disso seria proteger as vidas hoje e as economias amanhã. No Brasil de Jair Bolsonaro, no entanto, essas medidas não ocorreram na dimensão do necessário. A política esteve mais próxima da tese do “deixa morrer”, contestada por cientistas, tal qual na Amazônia e no Pantanal pratica-se o “deixa queimar”.

Tanto que especialistas ouvidos pela RBA apontaram que a tese forçada pelo governo de Jair Bolsonaro, que demitiu dois ministros da Saúde no curso da pandemia, foi a de promover uma imunidade de rebanho. Isto é, “causar” imunidade por meio do contágio em massa. Uma política classificada pelo epidemiologista Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como “descabida e antiética“. A infectologista Raquel Stucchi disse que a única solução eficaz, a vacinação, não estará disponível antes de março do ano que vem. Até isso ocorrer, ela observa, o planejamento do país é um desastre. O preço da imunidade de rebanho são as mortes.

Essa opção do governo Bolsonaro fica clara em revelações do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, transformadas em livro. Mandetta disse ter alertado o presidente sobre o risco de o país chegar a 180 mil mortes e teve de Bolsonaro uma reação “negacionista e raivosa”.

Incompetência e irresponsabilidade

O ex-ministro da Saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) observa que, assim como não se preparou adequadamente antes da pandemia, o governo não está se preparando para o depois. Padilha diz que o Brasil é o 82º país do mundo em realização de testes, enquanto o Ministério de Saúde tem 9 milhões de testes guardados e não distribuídos.

Alexandre Padilha afirma ter esperança de que a pesquisa de uma vacina – único fator que pode proteger as populações num pós-pandemia – se concretize. Mas lamenta que o governo pratique uma espécie de campanha antivacina. Diz que, em relação a outra imunizações, o Brasil pela primeira vez neste século não atingiu a meta de vacinação de crianças. E que em relação a 2021, ainda que a descoberta da vacina se concretize, o orçamento proposto por Bolsonaro na Saúde não permite supor que uma vacina contra covid-19 esteja garantida de maneira universalizada a todos os brasileiros.

“É um misto de incompetência com irresponsabilidade”, afirmou em entrevista ao Jornal Brasil Atual. O deputado chegou a convocar autoridades a explicar na Câmara por que insistem em liberar a abertura de estádios ao público, enquanto o certo seria parar o campeonato.

Morte, destruição e pandemias futuras

No mesmo ano em que Brasil enfrenta a pandemia da covid-19, o país sofre também com as piores ocorrências de queimadas em biomas mundialmente importantes localizados na Amazônia e no Pantanal. E surgem as comprovações de que as queimadas não são fenômenos casuais. E tampouco provocadas por indígenas e comunidades locais, como mentiu Jair Bolsonaro esta semana à Assembleia da ONU. Os incêndios decorrem de práticas criminosas de ruralistas que querem ampliar áreas para o pasto.

Essas comprovações estão demonstradas no Atlas de Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico, lançado na quarta-feira (23) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Conforme informou a RBA, o documento inédito teve participação de especialistas do Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru. A constatação é ainda ratificada pelo cientista Carlos Nobre. Em entrevista à BBC Brasil, o pesquisador do Instituto de Estudo Avançados (IEA) da USP refuta o argumento de Jair Bolsonaro. E afirma que a maioria dos incêndios na Amazônia não ocorre em áreas já desmatadas nem é provocada por caboclos e índios. “É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária, e quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feita por grandes propriedades”, diz Nobre.

Embora se noticie hoje que a Polícia Federal já tem elementos para indiciar fazendeiros criminosos, como informa a Folha de S.Paulo, a gestão do governo federal fez vista grossa ao desastre ambiental. Um desastre que pode inclusive levar a novas pandemias. Segundo o jornal, o governo gastou apenas cerca de um terço do orçamento de que dispunha para prevenir e combater as queimadas.

Deixa queimar

Isso vai ao encontro do que a RBA também já havia informado. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, gastou R$ 105.409 nas ações diretas do orçamento entre janeiro e agosto deste ano. O valor corresponde a 0,4% da verba destinada a fortalecer a política ambiental. O levantamento foi feito pelo Observatório do Clima. E a gestão levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a classificar o ministro Ricardo Salles como “cidadão sem caráter“.

A política do “deixa queimar” foi denunciada esta semana no Jornal Brasil Atual por fotógrafos e ambientalistas que vivem no Mato Grosso. “Tenho observado que uma das estratégias de comunicação desse governo é observar o fogo queimar. E quando o fogo está acabando, e não tem mais nada para queimar, eles mandar atacar. Declaram vitória. ‘Vencemos o fogo.’ Mas é tudo papo furado, mentira. Ninguém está controlando o fogo em lugar nenhum”, relata o fotógrafo Mário Friedlande. A reportagem completa a RBA publica neste fim de semana. “Nos focos no Pantanal a gente viu isso claramente.”

Os efeitos dessa tragédia para a vida no planeta estão também expostos no relatório Panorama da Biodiversidade Global, GBO-5, da ONU. O GBO-5 alerta para uma extinção em massa provocada pela sociedade como é organizada.

A gente faz o que pode

Há mais de um mês e meio lutando contra incêndios no Pantanal, o ativista ambientalista Ailton Lara, dono de pousada na região, relata em entrevista à Rádio Brasil Atual que a preocupação com o futuro da vida na região é generalizada. Ailton relata não apenas o empenho dos voluntários desde a proteção e alimentação de animais, como também com as abelhas. “A gente apaga o fogo numa ponte e tem outra pegando fogo. Temos que ter muitas abelhas para que, quando voltarem as flores, elas possam ser polinizadas. No momento, contido o fogo, tentamos levar frutas para a alimentação dos bichos. É bem tenso. A gente faz o que pode”, diz Ailton. Pena que o governo não.

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