Música Machista. Brecht, Amado, Chico, Gil, Rage, Magal, Martinho, Zeca, Sting, Fred, Marcelo, Michel. E eu. E Elza. E Zezé.

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim. Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero. Vou entregar teu nome e explicar meu endereço. Aqui você não entra mais”. (Elza Soares)

Na festinha da escola dos meus filhos, tempos atrás, aqui na Catalunha, todas as crianças cantavam Michel Teló.

Flávio, ele está dizendo que vai bater na mulher?”, perguntou-me uma mãe. “Não”, respondi. Expliquei que o verbo “pegar”, em castelhano, pode ser bater, dar pôrrada, maltratar, mas que não necessariamente pode ter esse mesmo significado em português.

Porém, confesso que depois, com calma, vendo a cara maliciosa do Michel na TV espanhola, pensei que aquele “ai se eu te pego” me lembrava, sim, um “pegar à força, mesmo”. Lembrei-me do carnaval de Olinda, minha cidade, quando virou moda fazer um círculo de homens, empurrar pra dentro alguma menina de passagem e só deixá-la sair quando cedia à chantagem de dar um beijo (de língua!) em algum daqueles marmanjos feios que sorridentemente lhe ameaçavam – com aquele mesmo sorriso maroto do Michel Teló.

Eram tempos em que eu ia ao show de um roqueiro que eu adorava, líder de uma banda chamada Camisa de Vênus e me extasiava gritando o nome de uma tal Sílvia (que dava nome à música), num orgasmo (macho) coletivo, em coro, chamando-a de puta e piranha: “todo homem que sabe o que quer, pega o pau pra bater na mulher”, idolatrávamos a letra do Marcelo Nova, líder do grupo, num disco antológico, gravado ao vivo. Escute bem alto, dizia na capa.

Em casa, eu ligava a TV e assistia outro líder, do movimento musical da moda, o Manguebeat, definindo o que era um Mangueboy. Fred, o líder, filosofava durante minutos sobre o que significava para todos nós a estética do movimento. Eu me sentia um Mangueboy, feliz. Até que a repórter da MTV decidiu perguntar, portanto, sobre o que seria uma MangueGirl. Ao que Fred resumiu, sem nada a acrescentar: “a MangueGirl é somente a namorada do Mangueboy”. Morri de rir.

Ponto para o Patriarcado. O que poderíamos esperar de uma juventude assim?

Quantas noites eu já cantei aquela música que até mesmo o autor, o Sting, do The Police, hoje nem quer falar dela? “Every breath you take”. Posse masculina total de uma mulher. Até o último respiro. Traduzida numa aulinha de inglês, cheguei a pensar que apenas expressava um grande amor. Doce ilusão.

Sambei no pagode, cheio de cerveja, Zeca Pagodinho, dizendo que ia quebrar cinco dentes e quatro costelas da sua mulher – a que ele mandava pendurar o nome dela numa faixa amarela na entrada da favela (rima linda!). O grande Martinho da Vila, igualmente: “essa nega, pra ser minha, vai ter muito que sofrer; apanhar quando merece, apanhar sem merecer” (pôrrada de qualquer jeito). Sidney Magal, ameaçando, sem medir palavras: “se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo”. E assim por diante. “Entre tapas e beijos”, construímos nossa personalidade machista, num imaginário que enfiava nas nossas cabeças, quanto mais bêbados melhor, que violência e amor andavam juntos. Mas, sempre (sempre!) um dos gêneros perdia, sofria, morria, violentada, assassinada. Adivinhe qual.

Coisas do passado? Não. Ontem mesmo estava escutando um podcast sobre o Rage Against The Machine e me salta um comentário: “essa música não te dá vontade de violar alguém”?

Não. Por sorte, respondeu o apresentador.

Sorte? Os tempos mudaram muito, felizmente. A questão agora é saber até que ponto mudou.

Hoje eu tenho consciência sobre a narrativa contida em Domingo no Parque, do melhor dos melhores, meu Mestre, Gilberto Gil. A faca, o sangue, a vingança de João contra o seu amigo José, Juliana no chão… Compreendo a denúncia explícita do imenso, maravilhoso, Chico Buarque: “eu encurralava, te dominava, te violava no chão; te deixava rota, morena, se eu fosse o teu patrão”.

Até compreendo quando eles evitam cantar coisas assim, hoje em dia.

Já não é tempo de Amado Batista vender milhares de LPs, dizendo que “atirava na mulher sem parar, porque ninguém sofre uma traição e se cala pra pensar”.

Tire esse disco. Ligue a TV e assista o noticiário contemporâneo, tentando “normalizar” o feminicídio. Marido gravando o exato momento em que degola o filho de seis anos de idade, diante da filha menor, de quatro anos. “Agora vá e conte isso pra sua mãe, aquela puta”.

Vá e não se esqueça que a cabeleira do Zezé, o que parece transviado e por isso merece que gritem na rua, em pleno carnaval, pra cortar o cabelo dele, tem o mesmo sentido do cabelo da mulata cuja cor não pega e somente por isso eu quero não o teu amor, mas o teu sexo, o domínio sobre o teu corpo, sua puta – igual a mãe do menino degolado. Um mesmo sistema.

Sim. Todos fomos crianças, sim. Mas o fato de agora sermos mais conscientes de todas essas merdas, lamento informar-te que não é suficiente. De boas intenções… morreu mais uma.

Acabo, com Bertold Brecht, dramaturgo e poeta alemão.

No seu poema Necessidade da Propaganda: “bons discursos podem conseguir muito, mas não conseguem tudo”. Brecht diz que por mais que as pessoas com fome escutem somente a palavra “carne”, não lhes satisfaz e sentencia: “pena que a palavra `roupa` aqueça tão pouco”, referindo-se ao gélido inverno nos campos de concentração nazistas.

Porque eu acredito no potentíssimo poder transformador da arte e da cultura. Para o bem. Ou para o mal. E você?

Aquele abraço.

Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya @1flaviocarvalho 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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