Mundo torto

Por Larissa Cabral

Tem dias que eu realmente não consigo acreditar em outro mundo, que não esse torto, onde a gente vive. Uma das notícias que me fez matutar, durante essa semana, foi a do assassinato de uma juíza, em Niterói, no Rio de Janeiro. Patrícia Acioli, 47 anos, deixou três filhos, a fama de juíza durona e um exemplo de que a Justiça brasileira (para deixarmos a questão nessas latitudes) está totalmente torta. Ela trabalhava na Divisão de Homicídios (DH) e era conhecida por atuar com rigor contra grupos de extermínio, que agem em São Gonçalo. E aí, notícias do meu cotidiano me dizem: quem é corrupto, passa ileso e recebe aval da Justiça para cometer mais um crime; quem tenta fazer o correto e utilizar de suas atribuições profissionais para o bem da sociedade, leva bala.

O tema me chama a atenção, não por ser uma juíza, mas por ver, cada dia mais, casos desse tipo. São juízes, profissionais da comunicação, delegados ou, simplesmente, alguém que faz uma denuncia ou se apresenta como testemunha, e que sofrem as conseqüências por decidir tomar uma posição, por optar não se calar e fazer o possível para reverter a situação, com base no acha correto.

Esse caso de Patrícia, que atuava na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, me parece ainda mais absurdo porque, desta vez (tá, não só desta, nós sabemos), os disparos, conforme as investigações até agora, partiram de armas de policiais, fogo amigo mesmo. Esses colegas devem ter pensando que ela estava fazendo bem o seu trabalho, bem até demais.

Juízes durões ou justos?

Outro aspecto que não me deixou sossegar em relação a esse tema é a importância que os grandes meios de comunicação estão dando a pequenos detalhes, como o motivo de ela estar sem escolta policial. Bom, o fato de Patrícia estar sem proteção no dia em que seu carro foi alvejado, por 21 tiros, ao chegar casa, na madrugada do dia 12 de agosto, pode ter sido determinante na sua morte, mas toda a especulação em torno da suposição sobre o motivo de ela ter dispensado esse serviço há cerca de três anos (por causa de um relacionamento com um dos seguranças) parece não ter sentido.

As perguntas e a indignação deveriam ser motivadas por outros fatos. Também se fala que ela não utilizava um veículo blindado.  Como se a pobre mulher fosse culpada e tivesse que aceitar e viver sob a condição de refém da insegurança em que vivemos. A família de Patrícia tem uma versão diferente: ela havia relatado ao TJ que recebia ameaças e teria tentado, sem sucesso, retomar uma equipe para fazer sua segurança.

Por causa de seu trabalho e de sua posição (porque o cargo muitos tem, né? Já a posição tá em falta…), de acordo com sua família, Patrícia já tinha recebido, pelo menos, quatro ameaças de morte, em cinco anos. Quando foi defensora pública na Baixa Fluminense, chegou a sofrer um atentado.

Na lista de condenações da juíza há casos contra milícias, máfias dos combustíveis e dos transportes alternativos. Na terça-feira (23), a Assessoria de Comunicação da Polícia Militar confirmou que 91 policiais militares eram réus em ações que seriam julgadas por ela. O coronel Mário Sérgio Duarte, que recebeu a lista, encaminhou os nomes para a Corregedoria da PM, que analisará caso a caso.

Quem está à frente das investigações desse caso é Divisão de Homicídios (DH), na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, que afirma estar tratando do caso como prioridade. O delegado titular da Divisão de Homicídios, Felipe Ettore, disse que todas as linhas de investigação são válidas, incluindo a passional.

Crime e investigação

De acordo com o delegado, o carro da juíza foi atingido por balas de pistola calibre 40, usada pelas polícias civil e militar, e pistola calibre 45, de uso exclusivo das Forças Armadas. Sim, acredito que a quantidade de armas “oficiais”, que estão na mão de bandidos, atualmente no Brasil, é impressionante, mas as informações, até agora, apontam para uma execução calculada. Além disso, chegamos ao ponto em que diferenciar polícia e bandido é bastante difícil (me desculpem a generalização, mas as injustiças me tiram do sério, às vezes).

As investigações mostram que os projéteis que atingiram a magistrada pertenciam a um lote comprado pela corporação e eram utilizados por batalhões do interior do Estado, entre eles o 7º BPM (São Gonçalo).

Outro pensamento que me vem em mente é a dimensão desse crime. A juíza Patrícia Acioli não foi a única vítima dos disparos e desse crime absurdo. A sociedade em geral sai perdendo. A Justiça e os bons exemplos se tornam mais escassos. Os corruptos permanecem e os criminosos agirão novamente, caso não sejam julgados e condenados.

Balaio de frutas podres

Em 2010, a juíza decretou a prisão de pelo menos quatro cabos da Polícia Militar e uma mulher que seriam integrantes de um grupo de extermínio da Marcha de Vans. No início deste ano, ela mandou prender seis PMs suspeitos de forjar autos de resistência.

De acordo com o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Manuel Alberto Rebêlo, Patrícia Acioli mandou mais de 60 policiais militares para a prisão. Entre os casos que seriam julgados pela magistrada, 50 réus respondem por supostos autos de resistência (morte de criminosos em confronto com a polícia). Uma das providências acordadas na semana passada, depois do crime, entre o Tribunal de Justiça do Rio e a Secretaria de Segurança Pública do Estado foi a transferência de todos os PMs, que respondem a processos judiciais na comarca da juíza assassinada. No entanto, a corporação ainda não definiu data para o remanejamento.

Nesse balaio, Patrícia é só mais uma vítima. Ela fazia parte de uma lista com 12 nomes de pessoas supostamente marcadas para morrer, que foi apreendida com um integrante de um grupo de extermínio que atua em São Gonçalo. Essa lista contém nomes de delegado, promotor, policiais e testemunhas de homicídios.

Já a lista de execuções desse tipo me parece ter mais de 12 nomes. Quantos deles devem estar esperando ainda pela investigação que aponte os executores e os mandantes dos crimes e que defina a punição justa (aquela Justiça que devia inspirar Patrícia em sua carreira de magistrada) dos acusados?

Há um lado bom?

É um pouco difícil ver alguma coisa boa diante disso tudo, mas nessa minha pesquisa sobre o caso de Patrícia, achei algo interessante. De acordo com o site R7, nas primeiras 18 horas após o assassinado da juíza, o Disque-Denúncia recebeu 27 informações sobre o caso. Existem sim pessoas que querem fazer o bem e que acreditam na Justiça e, melhor, utilizam de uma importante ferramenta para abrir a boca e falar algo, fazer o que podem para mudar a realidade, que nos é enfiada goela abaixo.

Encontrei também um caso onde a justiça foi feita. Machado Dias era juiz da Vara das Execuções Criminais e corregedor do presídio de Presidente Prudente (interior de São Paulo). Também juiz de casos ligados ao crime organizado, ele foi morto em uma emboscada em março de 2003, quando deixava o fórum onde trabalhava. O autor dos disparos, ligado ao PCC (Primeiro Comando da Capital), foi condenado em fevereiro de 2007 a 19 anos de prisão.

Um dos filhos de Patrícia, estudante de Direito da UFRJ, disse que deixou de acreditar na Justiça e não sabe se vai voltar a seguir com os estudos na área. “É preciso ver que ainda é necessário mudar muita coisa dentro das instituições”, disse ele no site do O Estado de São Paulo. Espero que casos assim, que deixam rombos em famílias e na Justiça brasileira, sirvam pra sacudir esse mundo torto. E espero mais ainda que a mágoa e a indignação se transformem em reflexão, consciência e tomada de atitude. Estou cansada de viver mais um mundo torto e penso o mesmo para as próximas gerações, que torço para que contem com mais Patrícias do que nós contamos.

No dia 15 de agosto, integrantes da ONG Rio de Paz e familiares de Patrícia Acioli fizeram um ato na porta do Fórum de São Gonçalo contra o assassinato da magistrada. Aqui você pode ver mais fotos.

Foto: Paula Alvadia/Agência O DIA

5 COMENTÁRIOS

  1. Muito bem escrita a matéria, uma tristeza o que aconteceu com essa juíza, a reflexão e discussão são os primeiros passos para a mudança, parabéns. gui

  2. Me orgulho tanto de você, sabia? Texto maravilhoso! “Estou cansada de viver mais um mundo torto e penso o mesmo para as próximas gerações, que torço para que contem com mais Patrícias do que nós contamos.”

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