Mulheres não temerão: reviravolta nas águas de março, a luta contra a opressão

Por Roberta Traspadini

1. A tirania do dever ser

A história latino-americana assenta-se na violência contra as mulheres cuja raiz é a propriedade privada sobre os meios de produção e a terra, sobre os corpos e sobre a vida. Nessa sociedade capitalista-patriarcal-racista a incidência da violência é ainda mais perversa, uma vez que nosso cotidiano é tomado por tarefas laborais e domésticas que através da superexploração e opressão nos jogam não só para a invisibilidade, mas para as tiranas condições do dever ser da sociedade mercantil.

No campo e na cidade, mulheres trabalhadoras, mães, companheiras, lutadoras, ainda quando não apareçam nos livros de história como as construtoras da ordem e do progresso burguês, são as que dão o ritmo ao desenvolvimento.  Sim, porque o fruto do trabalho socialmente produzido por nós é diretamente apropriado por poucos detentores do capital, majoritariamente homens. No modelo de desenvolvimento econômico baseado no patriarcado, somos mulheres e homens condicionados ao machismo e vinculados a uma ampla variedade de preconceitos e pensamentos conservadores que tendemos a reproduzir como nossa história, quando em realidade foi transplantada pelo opressor ao oprimido e naturalizada por esse como destino.  

Marias, Joanas, Anas são algumas expressões de gênero, muitas vezes silenciadas pela constante recriação estereotipada sobre o dever ser feminino. No capitalismo, do nascimento ao envelhecimento, a mercantilização impõe um nascer condicionado a rótulos e tende a gerar um crescer cheio de convulsões, abertas ou ocultas. Estas culminam em um amadurecer de dores entre o “somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter.”

A construção social sobre o dever ser mulher está mediada por uma parafernália objetiva e subjetiva de obrigações geradoras de uma ideia sobre o feminino, forjada na condução artificial sobre nossos corpos e mentes. A condução manipuladora sobre o dever ser dirigido à mulher é comandada por empresas de cosméticos, pela indústria farmoquímica de cápsulas e pílulas, por propagandas sobre a era fitness, todas amparadas pela ferocidade midiática a serviço do capital. A indústria cultural forja a propaganda para que o capital comande o delinear cirúrgico de nossos corpos, rostos e pensamentos.

Assim como no domínio do agronegócio no campo que envenena a terra, tornando-a mera mercadoria na lógica do lucro, a indústria da aparência projeta o veneno sobre os corpos e os artificializa, tornando-os meros objetos de consumo. A terra e o corpo são condicionados a agir mediados pela naturalização do veneno, processo que as enferma ainda mais. No universo da mercadoria, o veneno transforma o ciclo orgânico em “feiura” e naturaliza o artificial como possibilidade concreta a ser alcançada por todas, para além da posição social que integramos.

 Mulheres jovens e maduras são submetidas ao mesmo mal: não conseguem entender porque, quanto mais fazem para pertencer à sociedade do espetáculo, menos confortáveis se sentem ao longo do tempo. Da barragem do desenvolvimento programado sobre o corpo da mulher emergem doenças físicas e mentais, epidemias sociais que nos tornam reféns de um padrão insustentável do não direito à vida saudável. Segundo o último relatório da Organização Mundial da Saúde (2017), mais de 9% da população brasileira sofre de transtornos de ansiedade e quase 6% de depressão. Um retrato que mostra a realidade concreta desse modelo de desenvolvimento ancorado na morte em vida da classe trabalhadora.

Nossos sensíveis corações latinos sabem que quanto mais fugimos do natural, tanto maior o preço que pagamos para nos mantermos firmes na seara da artificialidade. Remédios de tarjas pretas, crises de todo o tipo e doenças do corpo e da alma tornam-se padrão na sociedade artificial. Nela, mesmo quando estamos repletas de gente que queremos bem próximas, tendemos a nos sentir sós. Por quê? Porque somado ao roubo do tempo inerente ao movimento do capital, estipula-se o roubo da vida atrelada a lógica mecanizada de compreensão sobre a beleza, o cuidado, a ternura.

2. A consciência sobre o poder ser

O mês de março, simbolicamente colocado como momento de visibilidade da luta antiviolência contra a mulher, é um grão de areia na histórica perversidade de gênero, raça-etnia em uma sociedade recortada pelo caráter de classe. No ambiente da propriedade privada não cabe a mulher ser dona de seu próprio corpo e querer. Ante isto, o debate de gênero se vincula ao de classe e ambos nos fazem questionar o desenvolvimento que temos (dever ser) e o que queremos (poder ser). O destino consolidado pelo dever ser tem matado nosso direito de poder ser, de forma múltipla e ampla.  Poder ser que deve estar ancorado no direito à beleza orgânica, ao compromisso coletivo, à ternura do cuidado sobre a terra, as vidas, a sexualidade, a natureza em geral.

A história da opressão de gênero não deve ser buscada fora da estrutura da exploração da propriedade privada, uma vez que a violenta desigualdade estrutural é inerente ao modo de produzir vida mercantil. No capitalismo dependente, dita condição violenta é ainda pior. O dever ser vendido às mulheres da periferia navega com os ventos do Norte para o Sul e chega na forma de cópia malsucedida do progresso originado nos países centrais e ganha moldes ainda mais perversos nos trópicos, uma vez que vem condicionada à cópia propagada de fora para dentro.

Nos desdobramentos do acesso às tecnologias de massas os donos do capital intensificam se o roubo do tempo e geram uma forma societária mediada por redes sociais que vão, aos poucos, forjando a ideia de falta de tempo para encontros presenciais. Nesse processo invasivo do dever ser tecnológico, é muito difícil poder ser, uma vez que para cumprirmos com o pagamento da sociedade de consumo temos que trabalhar cada vez mais e por mais tempo, condicionando-nos a um limitado viver em que a piora das condições materiais e subjetivas é progressiva. Nas plataformas online estamos com nossas vidas sempre desligadas, ainda que na aparência estejamos conectadas.

3. A luta entre o dever ser e poder ser

Em meio à crise é fundamental que reivindiquemos o cultivo. Nas relações sociais para além do capital, cuidar é uma construção tanto do masculino como feminino; é infantil, jovem e maduro; é latino e internacionalista; é humano. Mas o saber cuidar nos exige repensar nossas vidas cotidianas e prioridades frente ao destrutivo mundo em que estamos aprisionados. Isto vale para nosso atuar em todos os ambientes. Tanto no ambiente profissional como no pessoal, ou revisamos as condições históricas que nos tornam menos em vez de nos potencializarem a sermos mais, ou seguiremos mantidas em cárcere privado de forma permanente. Estamos condicionadas a tanta violência sobre o dever ser, que conseguimos falar sobre o que os outros vivem, mas temos dificuldades de narrar nossas próprias dores e desejos. A opressão tende a ganhar força quando não somos capazes de nos reconhecermos como fomentadoras dos processos que nos condicionam.

Frente a esta situação histórica, ontem e hoje seguimos lutando. E lutar contra a violência de gênero, raça-etnia e classe no capitalismo é sinônimo de um posicionamento contra a herança do patriarcado viva no cotidiano. É por isso, e por muito mais que em março nos movimentamos de forma coletiva com o intuito de denunciarmos as cadeias que nos prendem e nos sujeitam à condição de classe trabalhadora superexplorada e oprimida. Na luta cotidiana, é necessário nos guiarmos no mar revolto das águas de março e transitarmos dos oceanos vermelhos que fecham historicamente o verão do patriarcado, para uma sociedade sem opressores nem oprimidos.

Fonte: Carta Maior

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