Mostrando o esplendor da América para meu amigo Carlinhos Klitzke

Por Urda Klueger.

(Excertos do livro ¡Viagem ao Umbigo do Mundo!, publicado em 2006.)

Naquela tarde, a soberba paisagem de montanhas continuava, e me aconteceu uma coisa estranhíssima. Eu tinha um amiguinho chamado Carlos Klitzke, menino de 25 anos, com quem eu passara cinco anos e meio estudando História. Estávamos a começar uma Especialização em História quando veio a má notícia: Carlinhos estava com um câncer perigosíssimo, super-agressivo. Deveria viver, no máximo, algumas semanas. O meu amiguinho, no entanto, tinha tal coragem, tamanha vontade de viver, que lutou com aquele câncer por quase três anos. Eu fora visitá-lo, antes da viagem, e ele mal teve forças para abrir os olhos e sorrir um pouco quando falei das coisas engraçadas que tinham acontecido durante o nosso Curso de História.

Depois eu tinha viajado e quase não pensara mais nele – numa viagem, quase tudo muda todo o dia, e é difícil sobrar tempo para se pensar em coisas tristes. E naquele dia, nas montanhas do final do Norte do Chile, cerca de duas horas da tarde, hora do Chile (quatro da tarde no Brasil) de repente Carlinhos Klitzke como que estava ao meu lado, suspenso no nada, viajando por aquelas montanhas magníficas, e eu conversava com ele em pensamento, na maior naturalidade, como se ele estivesse ali mesmo. Deixo consignado aqui que não sou pessoa dada ao misticismo ou coisas correlatas, que tenho uma vida e um pensamento bem racionais – como explicar a presença de Carlinhos ali? Sei que lhe dizia:

– Vês? Não te dizia sempre que um dia iria te mostrar a grandiosidade da América? Vês? Aonde na Europa encontrarias tanta grandiosidade, tão soberba paisagem?

Era bem assim que falava com ele, na segunda pessoa do singular e levantando velho assunto que debatêramos naqueles anos todos que estudáramos juntos – quando se estuda História a gente sempre acaba se definindo por uma área ou região do Conhecimento naquela Ciência, e eu me definira desde o começo pela América dita Latina, enquanto Carlinhos tinha verdadeiro fascínio pela Europa, e muito havíamos discutido a respeito. Agora, ali naquela situação que eu não acreditaria possível, de novo estávamos a discutir como se Carlinhos ali estivesse, e então me feriu a alma uma certeza: Carlinhos se fora, e de alguma forma eu estava sentindo, sabendo tal coisa. Chorei amargamente ali na garupa do seu Chico, sempre cuidando para ficar bem escondida atrás dele, do capacete dele, para que ele não me visse pelos espelhos retrovisores e se preocupasse.

Na metade daquela tarde chegamos à fronteira com o Peru, em Arica, e enquanto esperávamos a longa verificação de documentos nossos e de todos aqueles veículos, eu conversei com as mulheres da nossa caravana, e também com o PHD Jaka, e lhes contei o que acontecia. Lembro como Terezinha, Cristina e Heloísa me entenderam e choraram comigo. Decerto Carlinhos partira mesmo, não havia outra explicação.

Naquela fronteira também seu Chico apareceu com grande foto emoldurada dos PHDs e os funcionários daquela alfândega numa viagem anterior, e foi uma festa. Aquilo me ajudou a esquecer um pouco o drama que estava vivendo, e acelerou bastante o nosso atendimento naquele movimentado posto de controle. Afinal, tive os documentos liberados e pisei terras peruanas… uau! Que bom! Eu gosto muito do Peru, e aquela já era a terceira vez que ia àquele país que falava tanto ao meu coração! Peguei o primeiro telefone público que havia, a dois passos da linha da fronteira, e liguei para a minha mãe.

– Mãe, chegamos ao Peru! – e ela ficou desejando um monte de boas viagens, e que a gente se divertisse muito, etc. Acabei lhe dizendo:

– Mãe, acho que o Carlinhos se foi…

E ela me disse para não pensar naquilo, para aproveitar a viagem – bem assim como as mães são. Depois soube que ela já sabia há muitas horas da partida do Carlinhos.

Voltamos à estrada, e de novo o Carlinhos estava ali, como que pairando no nada ao meu lado, e eu continuei a lhe mostrar a beleza incomensurável desta América. O Deserto do Atacama estava nos seus estertores, e então, em algum momento, Carlinhos já não estava mais ali, e eu passei a prestar a maior atenção à nova paisagem, em como os peruanos estavam em frontal guerra contra o deserto, tentando por todos os modos fazer crescer fiapos verdes na terra ressequida, sonhando, quiçá, transformar aquela secura em futura floresta.

Eles não pareciam estar obtendo grandes resultados, e os areais coloridos continuavam, mas às vezes, aqui e ali, alguma coisa havia medrado e crescido, e naquela tarde tive a surpresa de de repente, no meio de um pequeno, pequenino bosque que era do tamanho de uma pequena casa, bosque de pequenas árvores desconhecidas, ver nascido, crescido e agigantado o maior Tannenbaum que já vi na vida. Eu não sei o nome científico do Tannenbaum, mas explico que é um pinheiro que se usa no Natal na região do Vale do Itajaí, árvore trazida de fora pelos antigos imigrantes que formaram a região onde nasci e cresci.

O Tannenbaum é bastante comum nos jardins dos descendentes de alemães do Vale do Itajaí (e de outras pessoas também), e às vezes atinge alturas respeitáveis, fica maior que as próprias casas cujo jardim habita e então costuma ser cortado para evitar que caia sobre a casa, mas nunca vira um Tannenbaum tão gigantesco. Quem teria trazido até aquele lugar uma semente de Tannenbaum, um dia, e como ela conseguira germinar, medrar e crescer dentro da secura do deserto? Era uma planta alienígena, planta de climas frios – quem diria que poderia crescer na aridez daquela areia colorida, e ficar tão grande, tão alto, tão robusto, pelo menos com o dobro do tamanho do maior Tannenbaum que eu já tivesse visto na vida? Fica a idéia para o governo peruano: plantar Tannenbauns nas beiradas do deserto do Atacama!

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De tardinha, chegamos à bela e grande cidade de Tacna. Ela está a 560 metros de altitude e a 63 quilômetros ao norte de Arica, onde fica a atual fronteira com o Chile. Apesar das poucas chuvas, ela tem os arredores férteis e um clima agradável. Se descontarmos a História Pré-colonial, ela primeiro pertenceu ao Peru, e depois, em 1880, foi tomada pelo Chile em encarniçado combate, sendo atualmente, de novo território peruano. Há dúvidas sobre uma “fundação” em 1615 – o que é certo é que em 1681 o povo de Arica para ali fugiu, para escapar de flibusteiros, e tocou o lugar para a frente. Sofreu diversos terremotos, sendo que em 1833 o terremoto foi tão grande que ela ficou em ruínas.[1]

Ficamos em confortável e luxuoso hotel próximo à Praça de Armas, que tinha lá no fundo uma magnífica catedral Quinhentista. Por ali já deveria chover, pois além de as casas terem telhados, já havia muita coisa de plantas e flores nas ruas e jardins. Lembro que aquele simpático hotel oferecia, tão logo a gente chegava, como cortesia, um vale para que depois a gente fosse ao bar do mesmo e tomasse um pisco sour, deliciosa bebida muito comum por aquela região. Meus companheiros foram tratar da parafernália de acomodar bem todas as motos e o carro de apoio, e eu fiz o de sempre: tomei banho e ganhei a rua, atrás da Internet. Na esquina seguinte já encontrei um “locutório”, e foi só abrir o meu correio eletrônico para entrar, como primeira mensagem, uma do meu amigo Viegas Fernandes da Costa, como eu, escritor e historiador, me dando conta que o Carlinhos partira mesmo.

Eu desabei. Chorei ali naquele locutório como não chorava fazia tempo, transpassada de dor, enquanto enviava algumas mensagens ao Brasil perguntando mais detalhes. Chorava tanto qu o japonês que era dono do locutório ficou com pena de mim e me trouxe toalhas de papel para que eu secasse as lágrimas que teimavam em continuar.

[1] ENCICLOPÉDIA UNIVERSAL ILUSTRADA EUROPEO AMERICANA ESPASA. Calpe S.ª Madrid-Barcelona, 1958. V. 58 p. 1469 e seguintes.

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