Modelo energético, morte e outras banalidades

nilce-souza
Nilce de Souza Magalhães. Foto: Divulgação/ MAB

Por Rafael Reginatto, para Desacato.info.

Deus nos fez à sua imagem e semelhança. Depois disso, vieram os outros que, julgando-se deuses, quiseram cada qual que o mundo ao seu redor se tornasse à sua imagem e semelhança, ainda que para isso essa imagem necessitasse ganhar contornos mecanizados, infalíveis, bestializados e anti-humanos.

Historicamente a região norte do país, seja por seus recursos naturais, sua extensão territorial ou seu caráter inóspito, sempre sofreu com a cobiça e a ganância de poderosos em detrimento das necessidades sociais da maioria de sua população. Mortes e crimes de ativistas sociais, como a do emblemático Chico Mendes, passaram a ser contabilizados em planilhas e matérias jornalísticas de números limitados de caracteres. Os novos bandeirantes, contudo, já não assassinavam mais índios nativos ou selvagens. Pequenos agricultores, ribeirinhos e comunidades empobrecidas se transformaram então nas maiores vítimas. O escritor Ferreira de Castro, já em 1930, denunciou a exploração da mão de obra, a vida difícil e a morte de seringueiros da região amazônica no romance A Selva. O livro foi adaptado para o cinema num longa-metragem protagonizado por Diogo Morgado e Maitê Proença. Mas seus personagens e dramas pessoais, tão caros à região, parecem continuar restritos e encerrados em telas e páginas.

Recentemente a mídia nacional ignorou a morte por assassinato da ativista e líder comunitária Nicinha. Nilce de Souza Magalhães era militante do MAB e atuava contra a violação de direitos humanos nos empreendimentos de energia elétrica construídos no rio Madeira. A hipótese de que a morte de Nicinha esteja relacionada à sua militância contra as barragens da região não foi descartada. Vítima de um modelo energético em voga no Brasil que ainda contempla a construção de grandes barragens, com áreas de alagamento que acabam criando impacto ambiental e impacto social, incluindo a desapropriação de habitações de comunidades atingidas, o assassinato de Nicinha ainda não teve uma conclusão final do inquérito policial.

O que é certo, e que poderia poupar mortes e sofrimento, é a escalada energética mundial por uma matriz que seja de fato renovável, sustentável e limpa. A tendência mundial que evita a construção de grandes usinas hidrelétricas em virtude de suas mazelas sociais e ambientais vem encontrando em fontes como solar e eólica uma maior conformidade com as vidas que cercam tais empreendimentos. Não é preciso citar números. Basta olhar para a Europa, sua política e modelo energético para se perceber a evolução de mentalidade que vem privilegiando, desde indústrias até unidades familiares, fontes de energia não nucleares e não hídricas. O Brasil, ainda na contramão prática desse processo mundial, possui referências favoráveis no plano teórico tendo formado, nos últimos anos, pesquisadores e profissionais com especialização no exterior em fontes alternativas de energia, o que poderia minimizar impactos tanto no estudo como na execução de futuros empreendimentos de energia elétrica em território nacional. Bastaria que esses pesquisadores e estudiosos, cujos trabalhos científicos já começam a ser reconhecidos no exterior, fossem melhores aproveitados pelo governo brasileiro. Bastaria, como sempre, ter vontade.

O pensamento técnico, que privilegia a engenharia, não pode ir de encontro à vida. É preciso ampliar horizontes sem, para isso, devastá-los. A sociedade e os movimentos sociais são atores desse filme que não pode terminar mudo. Uma energia sustentável para o Brasil precisa sustentar vidas, mantê-las vivas. Nicinha perdeu a vida, perdeu para o progresso insofismável e insensível a soluções mais humanas e coerentes. O seu rio agora é vermelho. Sua lembrança de luta ainda pulsa, sem barramento, nas águas do Madeira.

Um modelo energético que dialogue e preveja as condições e interesses das populações atingidas, exaurindo sem falsa retórica as divergências, torna-se primordial. As populações e movimentos sociais anseiam por isso. As veias da América Latina e do Brasil não podem manter-se a Deus dará, eternamente abertas.

Rafael Reginatto é escritor (autor do romance “Entreilha” – Editora da UFSC) e dirigente sindical do SINERGIA.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.