Michael Löwy: “Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana”

Michael Löwy esteve no Brasil no final do ano passado para lançar um livro : ‘A teoria da revolução no jovem Marx’, que foi publicado em 1970 na França e só agora ganhou uma edição em português

Mas durante a sua estada no país, ele participou de muitos eventos e falou sobre temas diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de esquerda. Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da ideia de ‘ecossocialismo’, com a propriedade de ter sido um dos autores do Manifesto que defende essa bandeira.

Brasileiro residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais de 20 livros.

Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol, Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação’ em vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?

Os movimentos de ‘Indignados’ se opõem às políticas ditadas pelo capital financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres, a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da população – paguem a conta pela crise do capitalismo. Esta indignação é fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na história humana. A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx em sua teoria da revolução, inspirada pela filosofia da práxis.

Marx escreveu no século 19. As revoluções socialistas a que assistimos aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?

As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se assemelha às anteriores. A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas. Nas demais revoluções do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções asiáticas (China, Vietnam), foram os camponeses o principal sujeito do processo revolucionário. Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem dúvida, não repetirão as experiências do passado. Por outro lado, existe o que Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos’: a experiência da Comuna de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de autoemancipação revolucionária das classes subalternas.

Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na Europa (França, agora Espanha…). O que isso significa?

A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos, resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias, etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas inúteis’.

Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como o sr. analisa essa relação hoje?

Rosa Luxemburgo já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?’ (1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo. Simplemente, lembrava ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo. O problema da maioria dos governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as ‘reformas’ que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações, regressões no estatuto dos pensionistas, etc. Tratam-se de variantes do social-liberalismo, que aceitam o quadro econômico capitalista mas, contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais. É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue…

Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa equação é possível?

Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador têm levado adiante uma verdadeira ruptura com o neoliberalismo, enfrentando as oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para sua sobrevivência econômica, e para financiar seus programas sociais, da exploração de energias fósseis – petróleo, gás -, que são os principais responsáveis pelo desastre ecológico que ameaça o futuro da humanidade. É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais, mas eles poderiam utilizar uma parte da renda petroleira para desenvolver energias sustentáveis – o que fazem muito pouco. Uma iniciativa interessante é o projeto ‘Parque Yasuni’, do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa. Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos paguem metade do valor (9 bilhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.

A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava presente na obra de Marx?

Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.

O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr. analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo, como é o caso da economia verde?

A assim chamada ‘economia verde’, propagada por governos e instituições internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes’ bastante limitadas. Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis. Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e rentabilidade do capital. Outras propostas ‘técnicas’ são bem piores: por exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis’ que, como bem diz Frei Betto, deveriam ser chamados de ‘necrocombustíveis’, pois tratam de utilizar os sólos férteis para produzir uma pseudogasolina ‘verde’, para encher os tanques dos carros – em vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.

É possível implementar uma perspectiva como a do ecossocialismo no capitalismo?

O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspectiva, implica a superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e dos bens comuns. É através destas experiências de luta, de auto-organizaçâo, que se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.

A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que consiste essa crítica?

Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa se libertar da ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços, levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo. Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas, nas conquistas da ciência e da técnica. Em ruptura com esta visão – pouco compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo, massacres, bombas atômicas -, precisamos de uma visão radicalmene distinta do progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim pela liberdade humana, pela possibilidade, para os individuos, de realizarem suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre – para a cultura, o ócio, o esporte, o amor, a democracia – e uma nova relação com a natureza. Para o ecossocialismo, a emancipaçâo humana não é uma ‘lei da história’, mas uma possibilidade objetiva.

Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia, conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?

O assim chamado ‘socialismo real’ – muito real, mas pouco socialista – que se instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países da Europa Oriental e para a China. As intuições ecológicas de Marx foram ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os métodos do capitalismo. A socialdemocracia é um outro exemplo negativo: nem tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social’ de seu funcionamento. Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a socialdemocracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical. O ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20. Ele implica uma ruptura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente democrática da planificação socialista e ecológica.

Fonte: Fundação Oswaldo Cruz

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