Meu #8M

Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info

Um homem não pode sentir o que sente uma mulher. Um branco não pode sentir o que sente um negro. Nem homem urbano, branco ou negro, pode sentir o que sente um indígena. Sou branco, urbano e daí vou escrever.

Com mais de 60 anos de vida, e mais de 40 de jornalismo, assisti e participei trabalhando de poucas jornadas semelhantes. Lembro com clareza as mobilizações finais para o retorno à democracia no Uruguai. A vitória na Copa do Mundo de Argentina em 1986, apenas assentado em Buenos Aires. A campanha pró Lula em 1998. E muitos outros momentos em que o cidadão e o jornalista se misturavam dentro de mim em turbilhão difícil de pintar com poucas palavras.

Em todo caso, nessas e em outras oportunidades grandiosas de massa na rua, como a Revolta da Catraca na capital catarinense, por exemplo, eu não estava confinado atrás de um teclado, 18 horas seguidas, “caminhando sentado”, voando com as mãos. Correndo com nossa companheira Tali Feld Gleiser desde República Dominicana, de uma cidade a outra, de um país a outro, com uma vibração tal que era impossível comer, tomar um cafezinho.

Tudo começou em Porto Alegre, aí deu a largada meu #8M. Quando a colega Noele Scurs foi ao ar, ao vivo, percebi que aquele dia ia ser bem mais do que já imaginava. Nos dias anteriores sentimos essa ansiedade incontrolável a cada peça audiovisual que lançava Desacato em São Miguel do Oeste, somando-se ao material que ia construindo o veículo em Florianópolis. Quando surgiu a ideia de construir uma rede que enviasse reportes do #8M mundo afora, parecia impossível que isso viesse acontecer. Suécia fica longe demais, Honduras tem 4 horas de diferença no fuso horário. E até o Brasil de Norte e Nordeste parecia inacessível na terça-feira. Mas não foi assim. De Noele em diante e até a madrugada da quinta-feira 9, foi nascendo uma energia, uma força eletrizante, uma sensualidade imanente desta profissão única de sermos testemunhas da Vida, que apesar da experiência e do longo caminho, nos repõe a capacidade de reinventar-nos e nos emocionar com o milagre humano da construção coletiva.

Este homem aqui, heterossexual, feito de tango e candombe, de certa idade, vibrava a cada mensagem, a cada vídeo, a cada entrada ao vivo, com cada foto. Não foram poucas as vezes que as lágrimas cruzaram minhas rugas impertinentes. Muitas foram as ocasiões das mãos doloridas de tanto digitar. Demais as perguntas e as respostas para poder colocar todas as mobilizações na rede Facebook do Portal. Não havia planejamento possível depois do apitaço em Florianópolis, assim como não poderia havê-lo com as imagens do Uruguai, onde 1 de cada 10 uruguaios, lá onde eu nasci, saiu as ruas, como naquela estrondosa mobilização do retorno à democracia em meados dos 80.

Toda a experiência de anos de mobilizações, de coberturas materiais e virtuais, não era suficiente para compreender o que estava acontecendo. Até que Rosangela Bion de Assis, Caroline Dall ‘Agnol e Mayara Santos subiram na passarela do Terminal Rita Maria para filmar as Mulheres Trabalhadoras, Estudantes, Trans, Avós, Mães, Filhas, Desempregadas, Negras, Brancas e Indígenas num grito só: Fora Temer!

O fantoche ilegítimo do capitalismo mais selvagem representava séculos de opressão, ódio, escravidão, dominação sistêmica, machismo, homofobia, sexismo, autoritarismo, moralismo, patriarcalismo. Por fim Michel Temer tinha algum sentido social e público. O usurpador do mandato legítimo de uma mulher pôde sentir de que estão feitas as mulheres. Os homens precisávamos ouvir que as mulheres não estão dispostas a mais sacrifícios e condenas materiais, físicas, espirituais. Não estão já dispostas a se ajoelhar frente ao algoz que as persegue, tortura e difama há séculos. Não estão já dispostas a ser tratadas como objetos comportados e do lar. A hora da injustiça está acabando.

Nesse #8M, o velho jornalista percebeu que há esperança, que há Outro Mundo Possível; que é viável construir outra sociedade, desconstruir a barbárie. Nunca a dor nas mãos e nos braços por tanta e tanta labuta foi tão útil para o crescimento de uma pessoa que já não galga mais centímetros pra cima. Comparti com minhas colegas do Desacato, com nossas colaboradoras, com leitoras e correspondentes, uma coisa que não posso sentir, porque não sou mulher, mas, que intuo, tráz consigo, no sentido que, em outro tempo da história, deu às palavras o Comandante Che Guevara, O Homem Novo.

Foto: Marcelo Zapelini, para Desacato.info

 

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