Messianismo – ópio do povo ou movimento de resistência?

Muitos dos movimentos populares de resistência à exploração social ou contra o colonialismo imperialista contradizem a máxima marxista de que a religião é o ópio do povo.

Evidentemente Karl Marx se referia a manipulação das tendências cristãs impostas à Europa de sua época e desde a continuidade do Império Romano pela Igreja Católica. Mas a um e outro a resistência dos povos daquelas eras sempre teve nas religiões célticas ou de outras origens o poder de aglutinação de forças dos que em defesa de suas crenças nas evidências naturais da Grande Mãe, enfrentaram os planejados símbolos patriarcalistas do monoteísmo herdado do judaísmo pelo catolicismo de Roma.

Marxistas brasileiros se entusiasmaram com os resultados de uma pesquisa encomendada pela Igreja Católica no início da década de 80, onde se aferiu que apesar de se manter como religião da maioria o crescimento das seitas evangélicas as aproximavam, mas nenhuma das divergências interpretativas do cristianismo evoluíra tanto quanto o ateísmo.

Daí o recrudescimento de acusações e disparates contra os ateus, inclusive da parte de jornalistas desconexos que incluem perguntas sobre crenças deístas em debates políticos e o mal estar perante a questão da parte de candidatos igualmente desconexos às realidades sociais.

Porém, não mais conectados, aqueles que se entusiasmaram com o desenvolvimento do ateísmo entre as classes populares mais uma vez demonstraram dificuldade de compreensão das diferenças entre os povos americanos e o europeu.

Uma coisa é o ateísmo desenvolvido a partir da consciência do indivíduo sobre si como pessoa e como integrante de um conjunto, bem outra é o surgido em consequência de uma relação social onde o desenvolvimento de consciência é desestimulado, quando não impedido.

Um personagem de Dostoievsky resume a questão numa única frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido.”

Assim chegamos ao latrocínio por um par de tênis e ao deputado embriagado que com seu carro ceifou vidas na madrugada de Curitiba.

Pró-forma ou socialmente o deputado talvez até seja católico ou protestante e, se menos inapto, teria respondido ao jornalista que, sim, acredita em Deus. Mas em verdade já não tem qualquer receio de ser mandado ao inferno pela morte de um semelhante. Para os anseios individualistas do deputado, Deus é o velocímetro como também pode ser quaisquer das múltiplas obtenções garantidas pela inimputabilidade de seus poderes econômicos ou políticos.

Na condição social oposta, a única consciência possível é sobre as necessidades básicas de sobrevivência.

Quando a própria existência escapa ao sentido de coerência perante a efemeridade de ambas as realidades, aí então ao ópio propriamente dito, sem nenhuma analogia que não seja com correlatos de similares efeitos em alteração de uma impossível consciência ou de uma realidade caótica. Do ecstasy ao oxi as variedades de opções são tantas quanto as que existem entre as ordens católicas e as assembleias e igrejas evangélicas.

Cada geração com os escapes e fugas próprios às suas épocas.

Mas na maioria dos casos à religiosidade popular não escapa a consciência da realidade que, por mais negativa, não se pretende alterada apenas através de efêmeras alucinações. Por mais estoicos e acusados de fanáticos, os movimentos messiânicos que se espalharam por toda a América pretenderam alterações concretas e efetivas de uma realidade inadmissível às consciências de gente simples, mas cientes da desumanidade das condições a que são submetidas.

Cultos xamânicos como o Catimbó no nordeste do Brasil ou a Dança Índia dos Espíritos das pradarias do sul dos Estados Unidos, assimilaram o catolicismo do opressor colonizador, mas numa versão absolutamente própria onde, da Igreja Apostólica Romana, apenas se aproveitou a essência do cristianismo inscrito no Novo Testamento.

Em verdade, nem mesmo aproveitamento, nenhuma apropriação. Apenas identificação como no canto de Milton Nascimento: “Eu tenho esses peixes e dou/Eu tenho essas matas e dou/De coração!”. Não é aprendizado, mas apenas um modo de ser que identifica com o que se diz ter pregado Jesus Cristo. Embora de impossível assimilação pelas próprias igrejas cristãs, aos chamados pagãos já era comportamento natural que foi herdado pela gente mais pobre das Américas.

Os próprios missionários europeus da República Guarani reconheceram essa essência nos Povos das Missões e todos registraram ter encontrado entre aquela gente sem batismo o verdadeiro sentido de cristianismo e a concretização de tudo o que Cristo teria pregado no Novo Testamento.

Os prelados da mais radical ordem da Igreja Católica Apostólica Romana, sediada na Ibéria, catequizados pela experiência comunal e socialista que integrava as 7 Missões Guaranis, desobedeceram ao Vaticano e por aqueles índios pegaram em armas contra Portugal e Espanha.

Outro exemplo que embora ocorrido no Brasil se deu entre colonos oriundos da Renânia (sudoeste da Alemanha), demonstra de forma muito contundente a distância do cristianismo popular ao das igrejas que sempre apoiaram os dominadores.

Jacobina Mentz Maurer não ouvia vozes de mensageiros de Jesus, como ocorreu com Santa Joana D’Arc. Tampouco se considerava esposa ou amante de Jesus, como Santa Tereza. E não se identificava com a Virgem Maria, a mãe de Jesus.

Jacobina Mentz simplesmente era a personificação feminina da principal entidade de uma religião patriarcal. Ela era a reencarnação de Jesus.

Pejorativamente chamados de Muckers (santarrões) por seus conterrâneos luteranos, os católicos seguidores de Jacobina pegaram em armas contra seus próprios parentes, alguns também católicos. Enfrentaram e impuseram derrota às tropas do Exército Brasileiro.

Ainda que o conflito aparente-se gerado por controvérsias religiosas, em verdade os verdadeiros motivos daquela guerra que se desenrolou de 1866 a 1874 foi a espoliação na comercialização pelos alemães mais abastados de São Leopoldo que distribuíam ao restante da província o que a duras penas produziam os mais pobres, relegados às terras inóspitas do Vale dos Sinos.

A Revolta dos Muckers no Rio Grande do Sul não foi o único movimento messiânico de resistência contra o ultraje das classes populares. Embora alguns desses movimentos não tenham superado doentios delírios de seus líderes, como o relatado por Ariano Suassuna no “Romance da Pedra do Reino”, na maioria dos movimentos populares a interpretação do cristianismo é muito mais uma reação de consciência dos valores humanos do que de subjeção típica das classes intermediárias, essas sim iludidas por engodos messiânicos a prometer provimentos e outras milagrosas realizações individualistas.

Por mais que sejam acusados de fanáticos seguidores de delirantes doentes mentais, os movimentos messiânicos corresponderam a uma realidade e a um universo muito mais concreto e plausível. A uma consciência sócio/política incomparavelmente maior do que as manipuladas no cotidiano doméstico pelas igrejas eletrônicas de canais de TV

Através do depoimento colhido por Celso Martins se demonstra aqui que o mesmo também ocorreu na Guerra do Contestado, com decisiva influência messiânica do Monge José Maria.

Segue Crônicas do Irani (2) – Fala Antônio Martins Fabrício das Neves. Agradeço a publicação.


Antônio Martins Fabrício das Neves. Irani-SC. Foto: Margaret Grando.

*Crônicas do Irani (2)

Por Celso Martins.

Fala Antônio Martins Fabrício das Neves

 

No dia 17 de outubro de 1990, o senhor Antônio Martins Fabrício das Neves foi entrevistado pela professora Eunice Cadore Franzack em sua residência na Fazenda Bela Vista, no Irani-SC. A entrevista gravada foi transcrita por Dylce Joana Weirich e se encontra no Museu Histórico de Concórdia-SC.

Nascido em 13 de junho de 1922, filho de João Damas Fabrício das Neves e de dona Gertrudes Martins de Lima, Antônio cresceu ouvindo relatos do entrevero e seus personagens. Nos anos 1930 ele colocou em versos as informações recolhidas.

O que ele diz sobre José Maria, José Fabrício das Neves e o combate de 1912?

Fabrício era “um dos de mais confiança” do monge. “Até o José Maria disse que ajudou muito ele nesse ideal de colonização, então depois ficaram muito conhecidos, muito amigos. O José Maria tinha ele como um assessor dele, mas um assessorava o outro porque não tinha um posto maior que o outro”.

No dia do combate José Maria disse a José Fabrício “que se era para morrer gente ele ia morrer”, pois não ia deixar “essa coloniada tudo aí na frente e eu ficar lá atrás, e nós temos que ir na frente”.

José Maria “não falava” do monge João Maria, “nunca falou”. Era uma “pessoa que só pensava para o bem, ele, acho que ele era mesmo um legítimo monge”. Era um “um homem muito inteligente, muito, ele falava onze línguas e rezava uma missa como os padres antigos rezavam”. Rezou uma missa no Irani antes da batalha. “Diz que previu que ia morrer por que ele disse para o Fabrício – eu vou morrer, mas você não passe do meu sangue que você vai ser um herói no mato. Agora se você vai para a cidade… No campo você vai ser um gato, no mato você é uma onça e no campo você é um gato. Não passe”.

Disse ainda José Maria a José Fabrício: “Venha até onde nós brigamos e vencemos e volte para trás, não passe do nosso sangue que nós derramamos. Mesmo porque daí você só vai mal. No mato você é uma onça e lá no campo você é um gato. Então, respeite isso aí. E foi o que aconteceu, o Fabrício se iludiu, passou, e aconteceu terminando morrendo”. Nos versos que escreveu Antônio se refere a tigre no lugar de onça.

Num determinado momento Eunice pergunta qual o motivo do Combate do Irani. Segundo Antônio, circulam “muitas idéias” a respeito, “mas o que o povo sem estudo aqui previa no mato eu concordo que eles estavam certos”. Ou seja, “havia qualquer interesse sobre aquele terreno, e esses general lá, esses comandante do Exército”, precisavam de um motivo “para não vir simplesmente vir aqui matar ou fazer o que eles queriam, inventaram aquilo”. Inventaram que “estavam formando um reduto de jagunço, a santidade”, o que provocou “um escândalo aqui no sertão”.

Segundo o depoente, “não era verdade”, porque “esse José Maria era um homem de muito estudo de muito respeito, e eles tinham ele como um bandido, mas bandido que não tinha morte, não houve nada”. Existiam na época “centros de colonos trabalhando com eles aí a espera da iniciativa que eles tinham. Então eu acho que nesse combate aí havia algum interesse particular”. De quem? Pergunta a professora Eunice. “Eu acho que de alguns prevendo não deixar eles fazer o que eles queriam”, destaca, “que era a posse da terra para todo mundo”.

Naquele tempo, observa Antônio Martins Fabrício das Neves, nas regiões de Palmas, Curitibanos e “na costa do mar”, “já tinha essa gente muito rica, tinha esses donos que trabalhavam na estrada de ferro, porque eles já queriam colonizar. Então eu acredito que o pessoal ficou nessa suspeita, que houve isso por causa do próprio terreno, não foi por outra coisa”.

Reprodução: Celso Martins. Acervo: Cecília B. Talim (Concórdia-SC). José Fabrício das Neves (a direita, de branco) com seu estado-maior em Catanduva-SC (1919).

Questionado sobre problemas ocorridos em Palmas quando um grupo de moradores foi buscar títulos de terras, Antônio confirmou que o cartório de Palmas pediu que José Fabrício fosse até lá, que “ajudava e fazia o possível de documentar todo esse pessoal que ele levasse”. Porém, continua, “o interesse de outra gente, de algum, o interesse de algum outro pegar aquela frente que o Fabrício estava praticando, para fazer a colonização. Tudo isso era o nosso povo, a fabriciada daqui como a senhora dizia, ficou nessa suspeita, e eu concordo com eles que isso quase que seria uma realidade”.

Um dos autores mais respeitados no tema Contestado, Maurício Vinhas de Queiroz, parece ter bebido na mesma fonte do senhor Antônio Martins Fabrício das Neves para escrever o capítulo sobre o Combate do Irani em seu livro “Messianismo e conflito social”.

Neste livro, resultado de pesquisas entre os anos de 1953 e 1961, Queiroz enfatiza a ocupação dos campos do Irani por famílias vindas do Rio Grande do Sul após a Revolução Federalista e os interesses do coronelismo de Palmas. “José Maria há muito conhecia o povo do Irani. Considerava-o sua gente. Não é de estranhar que, perseguido” em Santa Catarina, “tenha surgido” em outubro de 1912 “no chamado Faxinal dos Fabrícios”. (QUEIROZ, p. 91-92) (Por Celso Martins, outubro de 2011)

 

Fontes

Transcrição da entrevista de Antônio Martins Fabrício das Neves a professora Eunice Cadore Franzack (Fazenda Bela Vista, Irani-SC), em 17 de outubro de 1990, existente no Museu Histórico de Concórdia-SC.

QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social – A guerra sertaneja do Contestado. São Paulo: Ática, 1981.

Celso Martins da Silveira Júnior, Laguna-SC, 23.11.1955. Jornalista (desde 1976) e historiador (2003-2007, Udesc). Autor de “Os Comunas – Álvaro Ventura e o PCB Catarinense” (1995), “Farol de Santa Marta – A esquina do Atlântico”, (1997), “Aninha virou Anita” (1999), “Tabuleiro das Águas” (2001), “Os quatro cantos do Sol – Operação Barriga Verde” (2006) e  “O mato do tigre e o campo do gato – José Fabrício das Neves e o Combate do Irani” (2007), entre outros. Atuou nos seguintes veículos: jornais O Estado, A Notícia, Jornal de Santa Catarina, A Gazeta, Bom Dia Domingo, Diário Catarinense (Diários Associados) em Florianópolis e diário Extra de Joinville; revista Mural; rádio Guarujá; TV Barriga Verde. Contato: [email protected].

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