Mesmo com leis específicas, tortura no Brasil é endêmica

Para Henrique Apolinário, “não tem ninguém que esteja preso no Brasil e que não seja torturado”

Henrique Apolinário, advogado da ONG Conectas Direitos Humanos, acredita que tortura no Brasil é endêmica. Foto: Bianca Moreira/Conectas

Por Vinícius Crevilari.

A tortura é uma prática endêmica “desde sempre” no Brasil, mesmo sendo proibida na legislação brasileira. É o que acredita Henrique Apolinário, advogado do Programa de Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos e que acompanha situações em presídios brasileiros há 10 anos. Ele também crê que a política de hiperencarceramento no Brasil “marca a tortura e os tratamentos desumanos da atualidade”. Até 17 de julho de 2019, segundo dados do Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tinha um total de 812.564 pessoas presas, ficando na 3ª posição entre os países com as maiores populações carcerárias do mundo, atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e China (1,6 milhões).

Não só o sistema de encarceramento, mas as permanentes crises de segurança pública, as ausências de investigações em casos que revelam torturas de vítimas, bem como a política de combate às drogas permitem a estruturação de novas formas de tortura, como a privação do sono, a ausência de banho de sol para presidiário, ou o uso de armas não letais para causar ferimentos imperceptíveis nas vítimas. Henrique explica que tais formas de flagelação não são consideradas tortura por muitos agentes públicos, o que faz com que essa “briga sobre o que é ou não é tortura se torne sádica”.

Legislação Brasileira

Embora a Constituição de 1988 proíbe a tortura (artigo 5, parágrafo III), o Brasil só foi ter uma legislação que define e tipifica a prática da tortura como crime em 1997. A Lei 9.455/1997, entende como tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” e “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. A pena é de 2 a 8 anos em regime fechado, semiaberto ou aberto, dependendo da gravidade.

“A Lei 9.455/1997 expande bastante a conceituação da tortura e é até mais ampla que alguns tratados internacionais, como a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984, da qual o Brasil é signatário. Mesmo assim, existe até hoje muita dificuldade em documentar, provar e condenar pessoas pela prática de tortura, bem como de buscar reparações por isso”, explica Henrique.

“A lei é forte, mas a tortura continua acontecendo, tanto é que todos os relatórios sobre o Brasil e todos os órgãos nacionais e internacionais reconhecem que a tortura é endêmica no Brasil”.

Locais de tortura

Henrique conta que a prática da tortura no Brasil normalmente acontece em locais de difícil acesso, como vilas, terrenos baldios, presídios, abrigos, manicômios e pequenas salas. Ele explica que após a denúncia da prática de tortura é necessária uma perícia, pois a legislação brasileira exige que exista uma prova concreta de maus-tratos, já que a tortura “é um crime que normalmente deixa vestígios”.

Porém, muitas vezes os agressores acabam lançando mão de técnicas de torturas que não deixam vestígios, dificultando ainda mais a perícia, as investigações e os julgamentos. “No Brasil e no mundo, polícias estabelecem as mesmas práticas, como bater na sola do pé, uso de fios de telefone, bater na costela… Além disso, esconde-se a pessoa por um ou dois dias, para que no momento em que ela passar pela perícia nenhum sinal de agressão seja encontrado”. Ele cita que algumas armas consideradas não letais, “como spray de pimenta e gás lacrimogêneo” também são utilizados para torturar pessoas, sem que vestígios de agressão possam ser percebidos.

Geralmente, segundo Henrique, quem realiza a perícia e a investigação são as corregedorias das polícias militar, civil ou federal, podendo enviesar os resultados. Ele aponta outros fatores que dificultam as investigações de crimes de tortura, como a questão da proteção das vítimas, que muitas vezes prestam depoimentos “semanas ou meses depois” do crime.

“A própria pessoa depois não quer falar, porque não sabe quem vai protegê-la”. E quando a vítima consegue atravessar por todas essas dificuldades, na hora de julgar o crime, promotores e juízes acabam considerando que tais práticas violentas não podem ser consideradas torturas, “naturalizando” as agressões sofridas pela vítima. As autoridades legais acabam entendendo apenas como “maus tratos” o que deveria ser considerado como “tortura”.

Combate

Para evitar possíveis atos ilegais na perícia, investigação e julgamento de crimes de tortura, criou-se o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, instituído pela Lei 12.847/2013. Este Sistema criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (onde Henrique é membro e representante da Conectas) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Segundo o então Ministério da Família e dos Direitos Humanos, o Sistema tem como principal objetivo “fortalecer a prevenção e o combate à tortura em locais de privação de liberdade por meio da articulação e atuação cooperativa de seus integrantes”.

Todavia, tanto o referido Sistema quanto os órgãos governamentais e da sociedade civil, ao invés de imprimirem “um olhar interdisciplinar, necessário para coletar informações e construir políticas públicas no combate à tortura”, acabam “não conversando” entre eles, explicitando o caráter falho do combate à tortura.

Somam-se a esses problemas, o fato do atual presidente, Jair Bolsonaro, não ser afeito às políticas de combate à tortura e ser conhecido por declarações anti-democráticas. Entre elas, estão os elogios feitos ao falecido Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército Brasileiro e ex-chefe do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime militar. Para Henrique, tais atos seriam “punidos severamente em qualquer democracia do mundo”.

Prevenção e Cenário 

Henrique acredita que a atual luta contra a prática de tortura no Brasil passa pelos combates “à tortura sistêmica e ao hiperencarceramento”, a “abertura dos cárceres”, o “fortalecimento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”, a “evolução dos protocolos do sistema de justiça” e a “independência das perícias”. Porém, o cenário encontrado é o de uma “mudança no paradigma de combate à tortura, a partir da “aceitação e apologia da tortura, a violência policial e a volta de manicômios” (muitos deles locais de práticas de maus-tratos e de técnicas de tortura.

“A Corte Interamericana condenou o Brasil diversas vezes pela situação de cárcere no país. O STF também tenta lidar e construir novos mecanismos de enfrentamentos dessa tortura institucional. Mas todo esse estado de coisas, tudo o que a gente tem aqui [no Brasil], não são casos específicos. Se você está num cárcere hoje, então você está numa situação que é inconstitucional e degradante. Não tem ninguém que esteja preso no Brasil hoje e que não esteja sendo torturado”, encerra.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info

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