‘Mesmo a ditadura de 1964 não me soava tão ameaçadora’

Foto: Wanezza Soares.

Por Mino Carta e Sergio Lirio.

Desde a última entrevista a CartaCapital de Celso Amorim, ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, as circunstâncias mudaram radicalmente. Não se discute mais a vitória de um candidato progressista, mas a preservação das bases mínimas da civilização. Embora reconheça a cegueira coletiva e a ignorância reinante, Amorim ainda acredita haver tempo de despertar consciências. “O mais importante neste momento é salvar a democracia.”

CartaCapital: Como o senhor encara o transparente apoio das Forças Armadas, fardadas e de pijama, a Jair Bolsonaro?

Celso Amorim: Bolsonaro não era uma figura tão popular nos meios militares até recentemente. Ele acabou por se tornar uma espécie de líder sindical para causas militares. Além disso, havia resquícios que de alguma maneira a Comissão da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff tocou, o que instigou setores mais radicais. Em boa medida, os pelotões e oficiais das Forças Armadas integram a classe média  brasileira. Consomem as notícias da mídia tradicional…

CC: … As notícias inventadas

CA: Inventadas, pois é. Muitos dos generais que conheci saíam do serviço para ver as novelas da Globo. Vida de classe média. Sofrem os mesmos impactos e comungam da mesma visão, espalhada pela Lava Jato, de que a corrupção era obra do Lula e do PT, mas que desacreditou toda a política. A explicação para a ascensão do Bolsonaro encontra-se menos em alguma atitude extraordinária sua e mais pela queda dos demais.

Para derrubar o Lula e o PT era inevitável provocar um “dano colateral”. A classe política como um todo foi afetada. Bolsonaro emerge então como uma figura antissistema. Os paralelos com a década de 30 do século passado são inevitáveis.

CC:  Em que medida?

CA: O artigo que mais impressionou nos últimos tempos não trata do Brasil ou da guerra cibernética. Foi um texto intitulado “Espere calmamente” e analisava a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Naquela época se ouviam argumentos semelhantes: “Quando ele chegar lá, a gente controla” e coisas do tipo. Um ou outro lembrava que não bastava prestar atenção no que ele dizia às vésperas de assumir o poder, mas o que falou durante a vida toda. Hitler amenizou até o antissemitismo de seus discursos às vésperas das eleições alemãs. E viu-se o resultado.

Fiquei muito preocupado, pois não sei qual caminho as coisas no Brasil podem tomar. Refaço. Temo pelas escolhas que poderemos fazer em breve. O governo Temer acaba de sancionar um decreto muito estranho, concentrando na Presidência da República as questões ligadas à inteligência de combate ao crime organizado. Nas mãos, neste momento, do general Etchegoyen, mas não sabemos quem irá substituí-lo…

CC: O Etchegoyen tem uma tradição familiar de repressão…

CA: … Ele é um homem preparado, nunca deu declarações fascistoides, mas vem de uma tradição conservadora… Mas não quero entrar nisso, senão vamos começar a apontar culpa por associação.

O decreto cria uma força-tarefa para o combate ao crime organizado. A Polícia Federal, que em tese deveria cuidar do assunto, aparece em sétimo lugar nesta força-tarefa. Isso contraria a distribuição normal de funções. E uma das definições de organizações criminosas também chama atenção. Incluem-se no rol aquelas que “atentem contra o Estado e suas instituições”. O que isso quer dizer?

CC: Serviria, por exemplo, para criminalizar o MST.

CA: Não analisei o decreto, mas fiquei com essas preocupações. No meio de uma ação qualquer repressiva, de repente o governo solicita poderes especiais. Quando o Hitler assumiu, ele chefiava um partido que havia conquistado no Parlamento uma maioria relativa. Os conservadores lhe deram o poder, pois achavam que iriam controlá-lo. Exatamente como muitos, não necessariamente fascistoides, aceitam essa situação no Brasil.

CC: O que o espanta?

CA: Espanta-me a normalidade com que a mídia trata esse momento. Até a  Míriam Leitão ressaltou as diferenças entre Bolsonaro e o PT em relação aos compromissos democráticos. Podemos discordar de suas posições econômicas, mas ela é séria neste ponto.

CC: A Míriam Leitão contribuiu decisivamente para o antipetismo. Ela, o Merval Pereira, as Organizações Globo de modo geral.

CA: E agora estão preocupados. Talvez eles tenham se atentado de que a hegemonia pode não durar.

CC: Essa incultura, essa ignorância crassa que caracteriza o Brasil, de cima a baixo, pois os senhores não são melhores do ponto de vista intelectual do que o povo, distancia o País de qualquer exemplo possível.

CA: Do ponto de vista político, considero os Estados Unidos tão ignorantes quanto o Brasil.

CC:  É possível…

CA: … Tem qualidades o país…

CC: … Teve momentos magníficos com o Roosevelt, pois havia as ideias do Keynes postas em prática. E deu certo. 

CA: Deu certo.

CC: Mas, tão logo eles recuperaram um certo poderio econômico, surgiu o macarthismo…

CA: … Aliás, peguei para reler um livro do Arthur Miller, acho que no Brasil é intitulado As Bruxas de Salem, sobre a caça às bruxas…

CC: … Sim, belíssimo…

CA: … Vamos nos preparando…

CC: … É um grande teatrólogo…

CA: É verdade.

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CC: Por que foi impossível até agora montar de fato uma frente democrática para enfrentar o Bolsonaro?

CA: Como disse, me surpreende a normalidade com a qual a situação é tratada. Estamos diante de uma ameaça real. Mesmo a ditadura de 1964 não me soava tão ameaçadora. Este movimento representado pelo Bolsonaro mexe com valores sociais, culturais.

CC: Há outro ponto. Os militares daquele período eram diferentes.

CA: Eram mais cultos?

CC: Um pouco mais, talvez. Alguém,  consta, tinha lido Victor Hugo. O Castello Branco era reconhecido…

CA: … Leu um livro (risos)…

CC: … Não importa. Por isso eram chamados de sorbonianos. Mas eles eram nacionalistas.

CA: É um pouco de mito. Há um momento forte do nacionalismo militar, mas não com o Castello Branco, que era muito alinhado aos Estados Unidos. Entrei na carreira diplomática em 1963 e o golpe aconteceu no ano seguinte. Fiquei muito chocado. Ingressei com uma política externa independente e me formei com as fronteiras ideológicas.

Quem teve uma característica nacionalista foi o governo Geisel, que padeceu de outros defeitos. E aí se desenvolve uma certa burguesia nacional. Os Bardella, os Villares… O nacionalismo nem sempre se expressava por boas causas.

CC: Não é estranho que os militares continuem a ter esse poder no Brasil? Eles não têm na Argentina. Ou no Uruguai.

CA: E não deveriam ter no Brasil. Não pareciam ter durante os governos do PT.

CC: Mas têm. Tanto que, quando eles aparecem, todo mundo recua. Neste momento, o que mais temo é o Exército, ainda de ocupação, e os togados golpistas.

CA: Togados golpistas…

CC: … Sim…

CA: E a mídia, né? Bolsonaro não era a preferência das Forças Armadas. E não as considero os principais atores desta crise. Os responsáveis foram a mídia e o Judiciário. Tem duas coisas que não se pode tocar no Brasil: combater as desigualdades e proteger os recursos naturais, o que leva necessariamente a uma política externa independente. Isso derrubou o Getúlio Vargas, o João Goulart.

CC: O mundo tem dado recados eloquentes sobre o temor da eleição de Bolsonaro. Como o senhor imagina uma política externa em um governo do candidato do PSL?

CA: Já não invejava os embaixadores brasileiros no governo Temer, obrigados a defender posições indefensáveis. Mas sempre haverá os oportunistas…

CC:  Não exclui a possibilidade de haver no Itamaraty quem esteja disposto a se bandear.

CA: Eles acham que servem ao Estado. Resistir é difícil. É o ganha-pão, muito poucos estão dispostos a enfrentar essa situação. Quando houve o golpe de 1964, ocorreram quatro cassações políticas no Itamaraty. Vai haver uma adesão. Com que grau de entusiasmo não sei. O que me preocupa é como o mundo vê o Brasil. Fico impressionado com a cegueira da nossa elite.

O grande capital internacional não chega a ser um entusiasta da democracia, mas quer algum verniz. Foge de uma coisa cruenta, da defesa de assassinatos e estupros. Quantos banqueiros internacionais não são gays? O Brasil é muito grande para ficar isolado. Teremos uma instabilidade muito grande.

CC:  O PT fez os gestos necessários para conseguir apoio para uma aliança democrática?

CA: Não estou no centro das decisões, mas acho que sim. A eleição ainda não acabou. É preciso estar disposto a negociar espaços de poder. Não se trata de loteamento, mas de uma coalizão para atrair gente do PSDB, do PDT e de outros segmentos. Não sobraram muitos, mas salvar a democracia é o mais importante neste momento.

CC:  A cegueira no Brasil é única.

CA: Sim, mas uma parcela grande ainda pode ser levada a compreender os riscos. É o mínimo a tentar. Um Brasil democrático é importante para o mundo.

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