Mensagens na garrafa

Foto: pixabay

Por Mauro Luis Iasi.

“Sempre escrevi sem saber ao certo por que faço isso,
movido um pouco pela sorte, por uma série
de casualidades: as coisas chegam como um pássaro
que pode passar pela janela.”
Júlio Cortazar

Quem poderia imaginar? Um estoque inesgotável de garrafas, papel e canetas era tudo de que ele dispunha. Como chegaram ali era o que menos o preocupava. No início, sim, elucubrava sobre possíveis naufrágios, carregamentos desviados, marés traiçoeiras. Mas agora ele organizara metodicamente seu dia e suas tarefas. Escrevia, acondicionava as mensagens nas garrafas e as jogava ao mar no momento em que a maré baixava, então as correntes as levavam para longe da praia.

Primeiro foram os bilhetes de socorro, mas logo estes se viram abandonados, uma vez que não tinha a menor ideia de onde se encontrava. Mesmo com detalhadas descrições da natureza local, seus dados pessoais e outras informações, seria pouco provável que isso pudesse indicar vagamente onde ele estava – e muito menos mover alguém na intenção de resgatá-lo.

Depois de uma fase em que se ocupou de praguejar em longos bilhetes nos quais maldizia sua pouca sorte, o infortúnio da vida, as mazelas de um destino cruel, passou a enviar cartas. Era estranho. Nunca escrevera carta alguma. Não tinha de fato proximidade com ninguém em especial, nem mesmo familiares que pudessem receber a delicadeza de uma missiva. Apenas escrevia e escrevia, compulsivamente.

Costumava começar como seguindo um tema de conversa antiga, como se o destinatário tivesse conhecimento do assunto. “Não houve baixas significativas que levariam o comandante a imaginar ser necessário mudar de estratégia”, assim começava uma de suas mensagens. “Sabemos muito bem que os pássaros, nesta época do ano, migram”, escrevia no início de outra.

Entretanto, foi quando começou a divagar em pensamentos mais profundos que o volume de suas mensagens ganhou a dimensão oceânica que verificamos. Divagações, pensamentos que fluíam pela tinta escura das canetas na aspereza amarelada do papel a uma velocidade que o assustaria se naquele momento já não houvesse perdido da capacidade de surpreender-se com alguma coisa.

Haveria alguém do outro lado, recolhendo garrafas? Lendo mensagens, pensando sobre elas ou tentando entendê-las? Aquele fluir interminável de ideias, sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre os outros, as constatações precisas sobre determinados fatos e personagens, os sentidos revelados sobre a natureza e a humanidade, teriam interessado a alguém? Quem perderia alguma fração de seu tempo abrindo a garrafa, desdobrando cuidadosamente o papel, lendo a mensagem, olhando para o vazio por um momento enquanto meditava sobre a relevância do que estava ali escrito?

Indagava-se: por que seguia nessa maníaca sina todos os dias, todas as horas, se ninguém leria o que escreveu nem pensaria sobre aqueles temas, tampouco despertaria para conclusões precisas e argumentos perspicazes? O que o levava a continuar escrevendo e escrevendo? Dobrando seus bilhetes com precisão, colocando-os em garrafas velhas e opacas, indo até a ponta da vazante e jogando-as com força para que as correntes as levassem? Para onde as levavam?

Estaria logo ali adiante um amontoado de garrafas tilintando ao bater umas nas outras sob o sol inclemente, sendo beliscadas por peixes curiosos? Eternamente na vastidão de um oceano interminável vagariam sem nunca chegar a lugar nenhum? Ou chegariam a praias tão desertas como essa da qual partiram apenas para trocar a pele molhada do mar pela areia e seus minúsculos grãos, meio enterradas e para sempre esquecidas?

Ao contrário de desmotivá-lo, essas divagações o impulsionavam a escrever mais e mais. Bilhetes que se tornaram mensagens, que se tornaram cartas, agora assumiam a forma de capítulos de grandes obras inacabadas que exigiam mais argumentos e considerações, outros olhares e perspectivas. Os dias e as noites quentes passavam como um pano de fundo etéreo sob o qual suas mãos deslizavam com maestria a caneta num jorrar caudaloso de palavras e palavras.

Numa tarde qualquer, ele parou. Logo após escrever uma frase de efeito que bem sintetizava todo seu pensamento, ele parou. Colocou calmamente os papéis na garrafa, fechou-a hermeticamente e colocou-a diante de si. Ficou ali, olhando a garrafa por horas. Por fim, levantou-se e caminhou até a ponta da vazante pela última vez. Segurou firme a garrafa pelo gargalo e a lançou nas águas turbulentas.

Os dias que se seguiram foram tomados por certo torpor. Sentava-se à frente de sua velha mesa e apenas olhava o brilho do sol que cruzava as garrafas de um marrom opaco e formavam caleidoscópios no piso de madeira. Caminhava pela areia, sentava-se à sombra da grande árvore que se debruçava junto à praia, olhando fixo para o horizonte.

Estava estranhamento tranquilo, não porque não tivesse mais dúvidas – ainda as tinha em grande quantidade –, mas uma tranquilidade inexplicável, como a de um artesão que olha seu produto com a certeza que está pronto ou como o cozinheiro que fecha a panela e desliga o fogo mais por intuição que seguindo alguma receita.

Ficou assim por muito tempo, olhando o horizonte e esperando por uma garrafa, uma única garrafa que, chegando à praia, dançando na arrebentação, fosse se aconchegar na areia. Uma única garrafa que traria um bilhete ou uma carta, um pedido de socorro ou uma divagação qualquer. Não importa. Mais que a mensagem que pudesse trazer, a garrafa lhe comunicaria algo essencial e pelo que esperou toda a vida. Do outro lado, havia alguém.

Leia mais:

O ano, a peste, a arte, os sonhos. Por Michel Croz.

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