Matheusa Passareli: estudante, pessoa não-binária e assassinada aos 21 anos no RJ

Foto e arte: Yuri Frazão e Gustavo Gontijo

Um crime abalou a voz que luta pela diversidade sexual e de gênero nesta semana. A estudante de artes da Uerj Matheusa Passareli, de 21 anos, foi assassinada no Morro do 18, em Quintino, na Zona Norte. Ela estava desaparecida desde a madrugada do último dia 29 e, apesar da apuração do crime pela polícia, o corpo não foi encontrado. 

Matheusa era uma pessoa não-binária, ou seja, foi designada menino ao nascer, mas não se identificava nem como homem nem como mulher. E, sim, como não-binária. Militante, ela trabalhava no projeto LGBTQ+ “Corpo Estranho” e trazia contribuições importantes nas discussões envolvendo gênero, corporeidade e sexualidade.

Segundo a polícia, testemunhas afirmaram que o crime ocorreu após Matheusa sair de uma festa na Rua Cruz e Souza, no Encantado, Zona Norte do Rio. Ela estaria falando frases desconexas e teria sido capturada por traficantes na entrada da comunidade do Morro do 18, em Quintino. Foi julgada e, sem motivo, executada. Os policiais declaram que há indícios de que o corpo tenha sido queimado após o assassinato.

“Mataram sem qualquer justificativa. (Matheusa) não tinha consciência de que estava passando por um tribunal e, por essa razão, foi morto”, declarou a delegada Ellen Souto, da Delegacia de Paradeiros ao RJTV. As investigações continuam para saber o que ocorreu na festa até o momento do crime.

Segundo a irmã Gabe Passareli, Matheusa havia ido à festa para realizar uma tatuagem com a técnica “handpoked”, usando apenas agulha e tinta, numa amiga que comemorava aniversário no espaço. Testemunhas disseram que ela se sentiu mal e deixou a festa falando coisas desconexas. “A Matheusa não se drogou voluntariamente (na festa). Isso foi algo que todas pessoas que foram dar testemunho afirmaram. mas que involuntariamente isso poderia ter sido uma questão. Podem ter colocado algo na bebida dela”, declarou.

O Portal dos Procurados divulgou na terça-feira (08) um cartaz pedindo informações sobre o crime e os suspeitos para a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA). Quem tiver informações, pode denunciar (com anonimato garantido) por meio do WhatsApp ou Telegram do portal dos Procurados, pelo número (21) 98849-6099, pela central de atendimento do Disque Denúncia (21)2253-1177, ou por meio de mensagem inbox do Facebook do Disque Denúncia.

CORPO ESTRANHO

As identidades não-binárias ainda são invisibilizadas e alvo de preconceito no Brasil. Muitas vezes são tidas como identidades ilegítimas, de pessoas indecisas e que não tem espaço, até mesmo dentro de muitos movimentos sociais. Tudo porque não se encaixam nas caixinhas “homem” e “mulher” e nem fazem questão de se encaixar.

O corpo de Matheusa explanava além das feminilidades ou masculinidades. A performance de gênero, a vivência e o discurso eram questionadores, poéticos, atuantes e transformadores. “Ser corpo estranho é ter tomado consciência da importância de existir, quando desde criança viver no mundo era seguir padrões, em detrimento de sua própria natureza. Detrimento do bem-estar de ser quem quiser. Da liberdade de poder habitar. Eu habito o meu corpo para buscar habitar corpos e espaços nunca conhecidos. Utilizo de poesia como forma de sobrevivência sobre a pulsão de ser verdadeiro e estar o tempo inteiro se afirmando”, escreveu.

Saída do interiorano Rio Bonito para a faculdade no Rio de Janeiro, Matheusa realizou o sonho de ingressar em uma faculdade pública. Recebia uma bolsa da universidade, que vinha irregular, e chegou a complementar a renda com trabalho em museu. Logo, tornou-se uma das vozes que propagava essa visibilidade e que rompia as estruturas da sociedade que, como ela mesma dizia, era “cisheterobrancanormativa colonizada e consumista”.

O enfrentamento ocorria em debates, manifestações, na universidade e coletivos. Estava nos grupos Seus Putos, da UERJ, que falava sobre ações estético-políticas de crítica às opressões e padrões, e Xica Manicongo, de arte e ativismo. Ela havia iniciado uma pesquisa sobre “performance e linguagem queer” em um curso de formação artística da Escola das Artes Visuais do Parque Lage. Também atuou na moda e em muitos ensaios fotográficos, despertando olhares para sua beleza. Em 2017, Theusa chegou a desfilar para o lançamento de Fernando Cozendey na Casa de Criadores. Fernando declarou que ela “foi uma pessoa encantadora”.

“Lembro da primeira vez que a vi em uma festa aqui no Rio, meus olhos brilharam com tanta beleza e autenticidade. Tinha tempo que não me alegrava com uma visão. Sinto isso quando vejo pessoas que exercem seu poder de ‘viver’, sem as amarras da sociedade que ainda exclui, tortura, diminui, ridiculariza e Mata tudo que considera diferente do que se vê em novelas, comerciais, capaz de revistas. Acho que a grande responsável por isso (essa morte) é a indústria – o sistema – que nos cria para sermos naturalmente exclusores e que nos ensina a odiar. Qualquer particularidade tem que ser abafada, qualquer outra forma de existir exterminada, afinal pessoas assim não servem para retroalimentar esse motor”.

Não é possível falar o que houve fora da festa até o assassinato com exatidão. Contudo também é impossível dizer que Matheusa não vivenciou os preconceitos, desafios e embates por ter um “corpo estranho”: negro, trans e não-binário. Sobretudo no país que 71% dos homicídios são contra pessoas negras (informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública), que é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo (segundo dados da Transgender Europe) e que pessoas não-binárias estão longe de uma visibilidade respeitosa.

A irmã Gabe afirmou que até então elas nunca haviam sofrido agressão física. “Mas o olhar mata também, a violência verbal, o modo como alguém se aproxima de um outro corpo também mata. Sofremos sempre vários tipos de violência”.

Aquele corpo buscava um lugar para morar – desabafo que fez nas redes sociais antes de sua morte. Aquele corpo foi alvo da incompreensão daqueles que formalizam o sistema e também daqueles que fogem do oficial. Isto é, nas mãos da polícia ou do tráfico, o corpo de Matheusa não foi acolhido, não foi abrigado e não foi protegido. Foi assassinado como se nada valesse, bem como tantos outros “corpos estranhos”. E nem mesmo após a morte foi respeitada em muitas matérias dos jornais.

MATHEUSA VIVE

Ao contrário de outras histórias, cujo fim termina o silêncio após o disparo, a voz de Matheusa não se calou. O assassinato abalou familiares, amigos, militantes, conhecidos, estudantes e fez com que o luto se ressignificasse em luta.

O Centro Acadêmico do Instituto de Artes da UERJ passou a se chamar Centro Acadêmico Matheus Passareli do Instituto de Artes da UERJ. Em nota, disseram que Matheusa “vem aparecendo em nossos sonhos. Sonhamos com suas roupas coloridas, suas calças largas, seu casaco de pelúcia rosa, suas saias e suas transparências”.

“Façamos ela presente: o corpo estranho, em todos os lugares; espalhado pelos muros da universidade e pela cidade. Theusa habita os ambientes mais curiosos, mais inexplorados. Nossos corpos e nossas mentes, todas atravessadas pela sua energia, seu carisma, sua vida. Tanta vida”, continuam.

Nas redes sociais, diversas pessoas escreveram a hashtag “Parem de Nos Matar”, VivaTheusinha, Vidas Negras Importam, Vidas LGBT Importam. O movimento alcançou personalidades da grande mídia, bem como a modelo Lea T. O artista Ribs desenhou Matheusa nos braços de Marielle Franco, vereadora também assassinada no Rio de Janeiro neste ano. O artista Gustavo Gontijo fez uma colagem com a foto de Matheusa de Yuri Frazão, que escreveu: “Hoje brilha mais uma estrela no céu e não podemos nos calar”.

Assim como Marielle, a morte de Matheusa representa não somente o assassinato de um corpo físico, mas de uma ideia pulsante.

Nesta quarta-feira (09), ocorreu na capela da Uerj uma homenagem à Matheusa, o ato ecumênico “Viva Theusinha”. A mãe e a irmã participaram do momento. Os presentes usaram roupas coloridas, em menção à personalidade de Matheusa, e estenderam uma faixa: “Viva Theusa”.

Para Gabe, é preciso manter a memória e o trabalho da irmã vivos: “Se tiver que existir a dicotomia entre o amor e o ódio, eu escolho o amor” minha irmã, meu amor e guia, @theusinha. você vive em nós, irmã. luz!”.

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