Marina se pintou

marina-silvaPor Joel Zeferino.

Que já começou a campanha para 2014, qualquer pessoa mediamente informada sabe bem. A questão ainda em aberta é quem serão os candidatos, e como se comportarão no jogo para a virtual presidência do Brasil.

Marina Silva é uma dentre muitos candidatos, todos sabem disso. A pergunta é: sabendo do pesado jogo que se arma para a disputa, qual o papel ela irá desempenhar? Para meu espanto, além do lugar de ambientalista, que faz parte de sua longa história de militância, ela investe cada vez mais em outro: a de ser a “candidata evangélica”, buscando atingir o desejo desse público de ter um “Presidente evangélico”.

É guerra. E Marina se pintou.

Como virtual “candidata evangélica” Marina precisa, é claro, se pronunciar sobre os temas que “afligem” seu público neste momento: a questão dos direitos sexuais e reprodutivos; os direitos das pessoas não-heterossexuais, sobretudo o casamento; a Comissão de Direitos Humanos da Câmara e seu presidente, Pr. Marcos Feliciano.

E o jogo de “maquiagem” de Marina aparece num vídeo de um debate em que participou na Universidade Católica de Recife, no dia 14 de maio, e que virou matéria em revista, alvo de protestos e desmentidos.

No vídeo, que é um fragmento de sua fala, ela começa defendendo o “Estado Laico”, num complicado jogo retórico, dizendo que há uma “confusão” porquanto esse Estado seria laico, mas não ateu, e que serviria para garantir as crenças e não-crenças, e, sobretudo, não poderia impor comportamentos baseados em crenças; e isso porque, segundo ela, isso seria “antibíblico”, sacando então textos bíblicos que confirmariam sua opinião — o que me pareceu extremamente confuso…

Dito isso, a virtual candidata evangélica afirma que o debate acerca dos direitos das pessoas homoafetivas está sendo feito de uma forma “em que se substitui um preconceito pelo outro”, e no momento mais polêmico do vídeo (1:58) ela afirma categoricamente que o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Marcos Feliciano “está sendo criticado por ser evangélico e não por suas posições políticas equivocadas”.

Pura pintura. Como antiga militante de movimentos sociais, Marina sabe bem que “polarizações” — feliz ou infelizmente — fazem parte da luta de grupos historicamente marginalizados: até que se chegue à plena conquista de direitos, esses grupos tendem a “fazer barulho” para chamar a atenção para as discriminações sofridas.

Marina não é inocente para não saber disso. Mas na “nova pintura” que faz de si mesma ela não pode revelar isso. Pelo contrário: ela corre para apagar seletivamente a “antiga Marina”, que já foi alguém que esteve na vanguarda da defesa dos Direitos Humanos, correndo mesmo risco de vida. Sua história de mulher, pobre, nortista, conta a história dessa gente sofrida, que lutou contra tudo e todos para sobreviver, e com coragem e pertinência soube fazer de sua luta não apenas algo individual, mas comunitário.

Mas hoje ela não representa mais isso. Entrou pesado no jogo da política. Quer se eleger Presidenta custe o que custar. É óbvio que a mesma crítica feita a ela aqui se aplicaria em muitos sentidos a Dilma e a Lula — ambos deixaram a radicalidade do passado para se tornarem palatáveis politicamente.

Marina, porém, pintada de candidata evangélica, ultrapassa outro limite perigosíssimo: faz suas falas “à luz da Bíblia” como ela repete várias vezes no vídeo em questão. Coloca-se como defensora dos evangélicos que estariam sendo “vítimas de preconceito” pelos defensores dos direitos da população LGBT.

Veja, eu sou do tempo em que os evangélicos eram realmente uma minoria (no sentido sociológico, claro) no Brasil. Lembro-me das piadas e algumas hostilidades na escola; e é claro que preconceitos não desaparecem no ar — eles estão por aí, e aparecem sempre que preciso, seja na conversa de bar ou nos comentários das redes sociais. Mas o cenário religioso brasileiro hoje é muito outro: evangélicos tem rede de televisão, bancada no Congresso, e poder, muito poder. Não são mais minoria, e quem tem um mínimo de honestidade intelectual não fala desse lugar.

Outro problema da fala “à luz da Bíblia” de Marina: ela se pretende porta-voz dos religiosos em geral, e dos cristãos-evangélicos em particular. Nada mais impreciso do que isso. As vozes do mundo religioso são pluralíssimas e do mundo cristão também!

Afirmo isso não a partir do vídeo, mas da reportagem em que procura desmentir que chama de fraude a reportagem que afirma que ela apoiou Marcos Feliciano. No meio do texto ela diz “Se alguém disser que casamento entre pessoas do mesmo sexo tem sacramento, para isso não há respaldo religioso”.

Ora, quem disse que o Casamento não pode ser um “sacramento” ou uma bênção dada a casais homoafetivos? Claro, claro, a maioria dos religiosos… a maioria dos cristãos… mas maioria não é sinônimo de totalidade e muito menos de “verdade única”. Há sim espaços cristãos abertos para dar a bênção-sacramento do Casamento a pessoas não-heterossexuais — se fosse falar de outros países, diria que há algumas décadas isso é comum, mas no Brasil isso também é algo real em nossos dias.

Eu me considero — e de fato o sou — cristão e evangélico; ademais, pastor. E de minha parte, que não sou candidato a presidente, sigo convencido de que o oposto ao amor é injustiça, desrespeito à autonomia e à dignidade de cada pessoa humana. Nesse sentido qualquer relacionamento que seja baseado em injustiça é, em minha leitura dos ensinamentos cristãos, pecaminoso: exploração sexual; relacionamentos baseados em violência física ou verbal; pedofilia etc., são alguns exemplos desses modos de relacionamento condenáveis.

Nem preciso dizer que estas formas pervertidas de relacionamento podem ser encontradas entre pessoas homo, hétero, bi etc. Dito de outro modo: são problemas humanos, para além das identidades sexuais. Sendo assim, acredito na possibilidade — e efetivamente conheço casais que concretizam isso — que casais homoafetivos possam ter relacionamentos saudáveis, amorosos, e à luz da minha experiência religiosa, sem exclusão de outros olhares, cristãos.

E se há amor num relacionamento, como posso eu, seja como cristão ou como pastor, negar a um casal — quer se entenda como bênção, sacramento, ou outro nome — o direito de se unirem diante de um Deus que se revela à humanidade como amor, nas palavras de Charles Wesley: “Amor imenso e incontido. Amor por toda a humanidade. Amor, pelo qual tudo subsiste. Amor, o qual todos a todos devem dar. Amor, que em tudo prevalece amor, que nunca, nunca falha”?

Novamente, sei que esta minha compreensão não é a única, nem mesmo a mais “popular”. Mas é uma compreensão existente e como diria John Lennon, eu sei que não sou o único.

Encerro, então, dizendo que não gosto da “pintura” de Marina: para ter novamente meu respeito, ela precisaria, sem abrir mãos de suas crenças particulares, defender de forma clara e sem meios-termos o direito daqueles que mais sofrem e parar de abrir a boca para falar em nome dos religiosos-cristãos, e “à luz da Bíblia” como se a voz dela fosse superior às demais.

Enfim, pintada desse jeito, ela também não me representa.

Fonte: Novos Diálogos.

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